30.12.05

Dantes, dizia-se: “fumemos o cachimbo da paz”. Fumava-se o cachimbo e a paz tornava-se realidade, tecido com o qual se vestia a existência. Um homem podia acreditar nela. Podia-se acreditar em tudo — pelo menos até à guerra seguinte.
Agora não. Andamos todos com uma arma apontada ao peito, e dizem-nos: “a paz é isto” — e é uma arma. Algumas têm o gatilho leve, e há gente com dedos nervosos. Esta guerra, eu não a entendo. É que, às vezes, um guerreiro quer apenas seguir o seu próprio caminho, sem lutas nem cachimbos de paz para partilhar. Muito menos ainda com uma arma apontada ao seu peito.

29.12.05

Já aconteceu um homem penetrar uma gruta funda e escura — desconhecida — , daquelas que descem até às entranhas da terra, do silêncio, da ausência. O homem — curioso, corajoso — foi andando, ver o que dava. E aconteceu:
numa curva no seio da rocha, foi ele dar com outro homem, que nesse momento se encontrava a cozinhar um bicho sem olhos numa fogueira mal acesa. E o homem que cozinhava não se mostrou surpreendido com aquela intromissão inesperada, e até falou, mas as suas palavras não foram entendidas, porque pertenciam a uma língua do outro lado do mundo.

28.12.05

Às vezes quer-se apenas o sossego de um lugar solitário. Mas já nãos se pode: todos os covis e tocas, todos os infernos e paraísos, todos os lugares do mundo estão agora abertos a todos os homens. E os homens todos são já muitos, e de muitas e diferentes atitudes.
Ninguém te conhece, mas mesmo assim vêm ter contigo, e fazem-te perguntas, e mexem-te na roupa, no corpo, nas crenças e nos pensamentos, e por isso é cada vez mais difícil um ser manter-se em serenidade na sua simples existência.

26.12.05

Sinto-me capaz de entoar um canto novo, novo de ser meu. Mas não sei ainda se há-de ser um lamento, uma oração ou um cântico de alegria. Nada tenho a lamentar, nenhuma divindade a quem dirigir uma prece, nenhumas alegrias a exultar.

25.12.05

Sem cor — sem decisão de objectivo, pois —, a voz vai-me nascendo, como um fio de água, pela cascata jovem da garganta aberta, e depois torna-se uma serpente, que desce por mim até à areia e vai perder-se nos confins do deserto.

24.12.05

Invadiu-me uma visão:
milhares de guerreiros penetravam, como eu, este deserto, cada um por sua porta; todos eles vinham ao mesmo, que era vir a nada, e agora estavam sentados por aí, algures, imóveis, a pensar e a sentir coisas semelhantes àquelas que eu próprio estou a pensar e a sentir; não nos víamos uns aos outros e, por mais que andássemos, qualquer que fosse a direccção, nunca nos encontraríamos aqui, os nossos caminhos nunca se iriam cruzar.
A raça dos guerreiros está a desaparecer.

23.12.05

Agora, passado um tempo que não sei, essa visão mantém-se ainda, como um sabor na boca do espírito, e magoa-me não sei o quê, nem onde. Será a isto que chamam a angústia?
Contudo, depois, penso: haverá mesmo uma raça de guerreiros, ou será cada guerreiro a sua própria raça?)

21.12.05

Quando eu era apenas um pequeno filho de homem, contavam-me amiúde histórias mágicas, as mais antigas. Ouvi muitas vezes aquela que falava do Grande Guerreiro, nosso Pai e Senhor. O Grande Guerreiro era o Deus da Guerra e da Honra na Luta, me todas as pradarias do País do nosso Povo.
Hoje, e embora a saiba de cor, já não sou capaz de repetir, acreditando-a, essa história fabulosa e heróica, tantas vezes ouvida com admiração, imaginada como crença.

20.12.05

Penso: “o meu povo”. Penso nos feiticeiros, nas suas máscaras de ritual:
o Demónio Branco, que era o Cavalo Selvagem, chefe da Manada Livre; o Demónio Negro — a Serpente, umas vezes, ou o Urso Gigante do Norte, outras; os Espíritos do Lar; o Cão; os Cem Nomes; a Águia, guardiã da vidência e da imortalidade...
Penso então, também: será o meu povo aquilo que se abriga debaixo de cada uma dessas máscaras? Serão as máscaras as mais verdadeiras imagens? E se as máscaras caírem, haverá mesmo homens por baixo delas? Quer dizer: é possível que haja um povo de homens?
E nova pergunta me surge, de imediato, nascida de todas as outras já feitas: será possível que as Histórias e as Lendas não passem de Mentiras hábeis, forjadas na sucessão e no segredo dos tempos? E se assim for, quem é que as conduz e inventa: o Sonho, a Necessidade ou o Medo?

19.12.05

Em certas noites suaves, quando estão as famílias todas reunidas, ao redor da fogueira grande, surge, mais elevada que as outras, a voz de um jovem, ou de um homem feito, ou de um velho, e essa voz diz, por exemplo:
“Sonhei isto: eu ia a caminhar junto a um precipício e, de súbito, um pé escorregou-me, e comecei a cair, a cair, e caí para o abismo. Mas enquanto estava nesse apuro, e quando pensava já, se bem que de uma forma difusa, na minha morte tão iminente, nasceram-me umas asas nas costas. Assim, comecei a voar, com tanta naturalidade como se o fizesse desde o instante do meu nascimento, e tornei a subir, até terra firme, e retomei o meu caminho, com maior prudência. As asas, essas, voaram de mim para longe”.
Findo o relato, logo alguém se adianta a explicar o sonho, como se isso o explicasse:
“Foste visitado pelo Espírito dos Viajantes. A Sorte protege-te”.
Assim se sonha o próprio sonho, em longas conversas. Mas será sonho o que se vê sem olhos, quando se está acordado? Terá sido um sonho assim, a minha visão de há pouco? Mais: terei eu tido uma visão? (Quais as diferenças e as semelhanças entre uma Visão e um Sonho?) Ou tratou-se apenas do cansaço, a rodear-me com os véus sedutores do ilusório sono? É que o cansaço trai, e eu fico sem entender se é lícito retirar algum significado concreto destas imagens que por vezes me assaltam o espírito, embotando-me a aparente certeza dos sentidos.
Penso: podem ser os Antepassados a comunicarem comigo, ou o Grande Espírito, ou um dos Demónios, ou o Grande Guerreiro. E penso também: ou pode ser nada. E então afasto tudo com uma bofetada no ar. Às vezes, não é o pensamento que nos dá a solução.

18.12.05

O Sonho move os Puros, o Tempo enche-os de fantasmas, a Construção destrói-o.
Nos espíritos dos homens, pelos caminhos que eles percorrem, é aí que a Necessidade assenta os seus arraiais de luxo e miséria. A Necessidade fala-nos ao Coração: pura ainda quando exige o Ser, é já dolorosa ao dizer das Fomes. Assim se desvendam e crescem os fantasmas do Tempo, que tudo fazem vacilar e apodrecer: o espírito do homem amolece, pelo uso e pelo vício (mesmo que, pelas mesmas razões e sem contradição, endureça), e ao acaso, jogando forte, leva-o por vias em que os meios se confundem com os fins, e de tal modo que a boca, ao falar, não traduz o Coração.
A Necessidade é leviana, o luxo do Poder corrompe. Há belas casas que, nas traseiras, abrem para abismos. Ou, dito de outro modo: não há nada absolutamente bom, nada absolutamente mau, não há nada absolutamente. Não há nada, ainda.

16.12.05

Guerreiro é o que consegue falar com ele, ao combatê-lo. Guerreiro é o que não teme o medo, o que não deixa que o medo o traia. Guerreiro é o que o enfrenta. Guerreiro é o que vence.

15.12.05

Assim, afirmo: um guerreiro aumenta o seu prestígio mais pelas vezes que vence o medo que pelo número de mortes que, segundo as circunstâncias, é capaz de conduzir, no medo da sua própria.

13.12.05

Traição se diz da morte inesperada, quando ela se vem intrometer no nosso sono, ou quando não se pode voltar as costas a um homem sem risco de vida, ou quando, acreditando-se num engano, se descobre que ele o é, ou quando — de novo o digo, para que seja esquecido — alguém nos corta o caminho com uma arma na mão e na outra um sinal óbvio ou incompreensível, mas que significa sempre: “proibido passar”.

12.12.05

Não: nada dever ser proibido, porque um homem tem de experimentar tudo o que quiser, a fim de compreender. Muito menos deve ser proibido a um guerreiro fazer seja o que for que seja da sua natureza, porque os guerreiros necessitam desesperadamente de ser homens, serenamente.

11.12.05

Tenho um cantil em pele cheio de água quente (água aquecida pelo sol, digo), três pedaços grandes de carne seca e um pão duro. Histórias, não. E é com isto que vou ter de sobreviver.
Agora, acaricio as minhas armas, uma a uma. Esta é o punhal, esta o arco, isto são as flechas. As minhas armas são habitadas por um espírito que lhes é próprio, e esse espírito chama-se Silêncio. Sempre ele.

10.12.05

Eu sou um guerreiro, e o guerreiro que eu sou pensa: “o guerreiro precisa de uma companheira”. Para logo de seguida pensar também: “mas para que precisa ele de uma companheira?”
Será esta uma das razões por que aqui estou? Ou a razão da minha presença aqui será tão vaga e tão ténue como esta poeira que o vento levanta e leva, este canto que o vento faz?
(Perceber porque se parte será perceber também porque se chega?)
E o que é uma companheira? A cas dos filhos de um homem? O mistério da nudez e da carne acesas? Aquela que entra na vida de um homem para lhe abrir os olhos e que, quando a morte chega, lhos fecha?

9.12.05

Há povos em que o Espírito da Mulher se tornou Divindade: divindade feminina que, aparentemente, a realidade não denuncia, pois também eles têm guerreiros, velhos e crianças. Viverão esses povos melhor que os outros? Ou será que a vida não se altera, quaisquer que sejam as formas que asuma?
Lembro-me das palavras de um velho do meu povo, que agora já não conta para o número dos que existem: “dentro de cada guerreiro habita uma mulher, e dentro de cada mulher cresce um guerreiro”. Mas isto foi dito quando a guerra era a verdade de todos os dias, na busca da paz (não em busca desta coisa podre que não é luta nem descanso), e agora já não sei.

8.12.05

Qual a pior coisa do mundo? O guerreiro sabe: é a falta de coragem. E a mentira. E o medo. O guerreiro sabe.

7.12.05

E a melhor coisa do mundo, qual será?
Isso, o guerreiro não sabe. Só sabe que se deseja sempre melhor que o melhor, para que melhor tudo seja.

6.12.05

Agora o dia começa a chegar ao fim. O sol vai morrer no horizonte, esconder-se debaixo das areias, vai vir o frio. Esconder-se-ão também as serpentes cantantes e os escorpiões.
Agora não me posso mover. Ponho apenas a manta sobre as costas e assim fico. Nem sequer sei se posso dormir. Mas acredito que o corpo mo dirá. Se não me trair, ele também.

3.12.05

A noite passou, e quase não dei por ela. Tenho os músculos rígidos, de os ter quietos, mas estou preparado para tudo. Esta é, aliás, a sensação mais simples e mais constante num guerreiro: a de estar sempre preparado para tudo.

2.12.05

O que é que nos torna mais vulneráveis: a doença, os sentimentos sofridos ou a incerteza no pensamento? Ser-me-ia muito mais cómodo crer que o que me enfraquece é a existência dos outros homens — o mundo que os homens criaram por cima deste mundo já criado. Mas sou obrigado a reconhecer, e mais vezes do que gostaria, que a presença dos outros homens me ajuda a viver, e a crescer, e a recobrar forças. Fico sem certezas, e só penso: que ninguém fez o mundo, que só os homens existem.

1.12.05

Pela noite, fora e dentro, acontecem estrelas. É bom poder sonhar que as estrelas são lanternas que guerreiros do céu transportam nas mãos acesas, através do espaço aberto, através de toda essa grandeza sem fim que magicamente nos rodeia e engloba, tão sem medida, esmagadora e bela, que não é possível percebê-la. Todavia, se este sonho tivesse um fundamento real, o que estariam todos esses guerreiros a fazer ali? Que combate seria o seu? Para quê tal vigilância?
Mas os sonhos são mistérios — acorda-se deles na solidão de não se conseguir quaisquer respostas ao que significam, ao wue propõem —, e só são bons enquanto duram.
A quem sonha, não devia ser possível acordar. Ou então, não devia ser possível sonhar. Para dar fim à destruição sem sentido. De uma vez por todas.