31.10.05

Eis que o sol morre de vez agora, sangrando na areia uma ilusão de fogo, de sangue seco.
E, súbita, a serpente reaparece, por vontade sua. Será assim, a cerimónia?
“Conheço-te”, digo-lhe eu. “Conversemos”.
“Que conversa queres ter?”, pergunta ela, a sorrir. É um sorriso de serpente, subtil, malicioso.
“Falemos de nada”.
Vejo-a a dançar um pouco, só para os meus olhos, antes de tornar a falar. Finjo, contudo, que nada vejo, e ela, aborrecida, rende-se ao jogo — seu — das palavras:
“Não és ninguém, guerreiro. O que vieste aqui fazer, ao reino de coisa nenhuma? Aqui não há servos nem senhores, e tanto a vida como a morte têm o mesmo e um só valor, que é o de nada valerem. Aqui, tudo o que há é tudo o que vês: sol e areia. Vieste em busca da morte, talvez. Esquece isso: é um mistério demasiado fácil para ti. Talvez encontres a tua, mas nunca ela”.
Dança um pouco mais, a provocar-me, a observar a minha atenção. Permaneço imóvel, mas a observá-la também: é espírito de muitos truques, não há cuidados que bastem.
Mostra-me de novo o seu sorriso mau. Mas parece estar satisfeita. Prossegue:
“Aqui, somos todos iguais. Somos o grande vazio. Devez tê-lo pressentido, e vieste, talvez, não pela morte mas pelo sonho de um despojamento total. Puseste-te tão nu quanto eu, e não te deixas perturbar. Até já te crês mais forte. Mas é sem importância, essa nudez. Porque, acredita, não há totalidade que alcances nem despojamento que consigas: terás outro cavalo, continuarás com as tuas armas. Pois julgavas que ias poder livrar-te delas, recuperar o silêncio sem nome dos primeiros instantes da vida? Liberta-te antes dessas miragens: sem armas, ficarias sujeito a uma nudez bem diferente dessa que agora apresentas — uma nudez nua, excessiva, feita de vazio e dor: uma nudez que homem algum pode suportar por muito tempo.
Poderia continuar a conversar contigo, interminavelmente, mas não vale a pena. Ambos sabemos que já tudo foi dito. Tu conheces a verdade, que é a tua verdade, e é à tua custa que a aprendeste, e aprendes, e aprenderás. Não sei, contudo, se esse conhecimento te vai alguma vez ser útil. Não sei se saberás usá-lo nos momentos certos, que é o que o faria importante. Seja como for, de mim não deves esperar mais nada. O meu veneno está em ti. Isso basta”.
Silenciosa agora, e de repente, a sua língua hipnótica. Escutei-a. Mas será que a ouvi?
“Acabaste, serpente?”, pergunto-lhe.
“Acabei”, diz ela.
“Então porque não te vais?”
“Estou ainda a olhar para ti, a ver-te bem pela última vez, e para todo o sempre. São cada vez mais raros por aqui, os doidos como eu. Geralmente, os homens preferem as ilusões mais palpáveis: o poder, a riqueza, a lúxuria. Tu não: és um louco da mais antiga espécie”.
“Sou um homem”.
“Ainda duvidas?”
“Duvidarei sempre de tudo o que me parecer duvidoso”.
“Que desejas, então?”
“Não sei”.
“E quem te julgas?”
“Ninguém, em concreto. Acontece, no entanto, que, nesta noite que passou, surgiu-me na minha certeza de ser homem a fugaz incerteza de não o ser — de não o ser inteiramente”.
“Sonhaste, talvez, que tinhas nascido nas estrelas”.
“Como é que sabes?”
“Sei. É verdade: todos os homens nas estrelas”.
“Que quer isso dizer, ao certo?”
“Qual o significado de todas as palavras de uma serpente?”
“Não sei”.
“Aí tens a resposta: não sabes. Nunca saberás”.
“Jogas bem com as palavras, e fazes-te maior pelo uso delas, mas até os enigmas que me lançam acabam por ser um jogo maior que tu”.
“Pensa e faz o que quiseres, segundo o que acreditas, e acredita no que aprendes de ti. Chamarás a isso liberdade. A tua liberdade. Já to tinha dito. Assim como já te tinha dito: a partir do momento em que o meu veneno entrou em ti, eu própria já não tenho qualquer importância”.
“Vai-te, então”.
“Preferes estar só?”
“Não o temo”.
“Um guerreiro não tem medo de nada, não é?”
“Um guerreiro não morre de medo. Mais que isso é coisa que também desconheço. Sou de uma grande ignorância”. “Ainda bem que asim é. Deixo-te então, como me pediste. Tu és tu, e portanto és tudo. Vive muito”.
Começa a afastar-se, para dentro da noite da noite que se avizinha.
“Diz-me ainda”, chamo-a eu.
“O quê?”
“O teu veneno far-me-á enlouquecer?”
Horrorosa de maldade, a gargalhada que ela dá.
“Guerreiro, louco é o que tu mais és. Não to tinha dito já?”
De puro gozo, a gargalhada ainda a ecoar.

29.10.05

Só.
Regressa-me agora a visão nítida, se bem que o céu já tenha escurecido a terra. Vejo tudo (com os olhos), só não me vejo a mim. Por onde andarei eu, nesta hora-fantasma?
A meu lado, inúteis, continuam as minhas armas. Não lhes toco: apenas me despeço do brilho que ainda lhes resta, pôr-do-sol sem fim. Nu — duas vezes nu, enfim —, que sofro eu de indizível, afinal? A serpente mentiu. Ou será que terei de enterrar sob montanhas de areia estas armas que já não sou, de modo a que nunca mais as encontre?
De modo a que, seja lá por que for, possa sentir-lhes a falta. Serei capaz disso?
Sou. E é o que faço.
Depois, torno a sentar-me. Prossigo a obscura espera.

28.10.05

Noite de novo. Absoluta.
Não sou senhor de mim. Falo em voz alta, mas parece-me ser sempre a voz de alguém que eu não sou. É um sonho — aquele que, afinal, eu já sabia mas esquecera. Um sonho assim:
Algures, um grupo de viajantes canta e dança, ao redor de fogueiras acesas, numa noite de lua cheia. Dançam e cantam para enganar o desespero, a ansiedade da espera. Porque é facto que me esperam. Eu estou longe, ainda; não sei quem sou, ignoro qual o meu nome. O vento entra-me por entre os cabelos, o meu cavalo parece incansável. Amo esse vento, amo esse cavalo. Chego, finalmente, coberto de pó, exausto, mas cheio de um sorriso vivo, que nenhuma imagem em águas paradas poderia alguma vez decifrar. Excepto eu. Explico-me: descobri o caminho procurado, o caminho que faltava. As crianças rodeiam-me, os homens abraçam-me como a um seu igual, irmão. Toco as mulheres no rosto, beijo-as na testa... e alguma coisa de grávido fica, de súbito, a brilhar nos seus olhos brandos, enormes. As fogueiras crescem, envolvendo o luar: abrem rasgos no breu da noite, o céu fica ainda mais amplo... O que é que me falta? Nada. Nada parece ter fim, tudo sugere explicação. O vento dorme agora. O cavalo...

27.10.05

O próprio sonho me deixa esgotado. Mais um mistério para a minha perturbada compreensão. E, no entanto, é fundamental aprender a ler os sinais. Todos os sinais.

25.10.05

“Perdi a memória”.
Tenho de reencontrar o cavalo. Falar-lhe ao ouvido. Fazer-lhe as perguntas exactas — as perguntas do caminho certo?
Mas como é que um gerreiro pode encontrar o caminho certo?
Mais difícil ainda: o que é o caminho certo?

24.10.05

O mais importante, talvez — um pormenor que me escapou: no meu sonho, eu estava armado? Havia reflexos de olhares nas minhas armas de sempre? A verdadeira questão é: era eu um guerreiro ou não?

20.10.05

Por momentos, parece-me ouvir uivos distantes. O meu peito salta, e o meu espírito acompanha esse grito nocturno com um grito semelhante. Sinto-me animal livre. Mas ninguém me deseja boa caçada.

19.10.05

Um homem, quando se tem a si próprio, pode não ter mais nada, porque ter-se lhe basta. Mas, assim sozinho, serei eu capaz, alguma vez, de ver através dos outros homens? Porque no meio deles é que a minha história se há-de completar.
É de estar lúcido, apesar de tudo, que sinto este medo frio de não conseguir ver. Sei, desde há muito, que os homens não são límpidos: a única coisa que, com certeza, é possível ver atravessá-los chama-se morte, e a morte não ajuda. A morte também não vê nada.

18.10.05

Penso uma vez mais nas palavras da serpente. O que me estará a fazer, ao certo, o seu veneno? Agora já não sinto a febre, nem o delírio de estar a provar todas as doenças, mas há algo... Não sei, não sei, não sei... Sufocante inquietação.
Sinto-me como se um monstro inimaginável fosse surgir-me pelas costas, na intenção de me devorar, mas eu não conseguisse fugir — nem sequer voltar-me, para defrontá-lo. Será isto a nudez? Será isto o medo, a morte do guerreiro, a miséria absoluta?
Se eu abandonar tudo aquilo com que sempre vivi, será que me tornarei melhor? Será que me tornarei puro, matéria virgem? Ou, pelo contrário, será que vou apenas ficar mais vazio, mais perdido, mais próximo da face mais gélida da morte total?

17.10.05

Reaquece a areia.
Dói-me tudo, e não sinto nada mais que essa dor constante e grave.
De repente, não sinto nada, e desconfio.

16.10.05

Olho. Limito-me a olhar. E vejo uma forma sinuosa a passar-me pela frente, sem se deter. É a Serpente. Chamo-a. Ela não dá resposta. Chamo-a pelo nome, mas ela desaparece.
Estou certo de que não se tratava de uma alucinação; e por isso penso: não era a Serpente, mas uma serpente.

14.10.05

Ergo-me. Espreguiço-me perante o sol ainda nascente. Estou vivo. Fabulosamente vivo. Imagino-me a ver-me, de longe, através dos olhos de outro homem.
O que vejo é uma vaga silhueta erecta, longínqua, perdida na vastidão do deserto doirado.

13.10.05

Vejo-me agora pelos meus próprios olhos, e descubro-me vestido. Afasto o tecido, em busca das minhas feridas. Vistas assim, como se pela primeira vez, parecem particularmente insignificantes. Todavia, algures em mim, uma contínua e silenciosa dor permanece activa. Dir-se-ia que o veneno atingiu mais fundo que a carne, porque a dor parece ter-se instalado no próprio espírito, como uma angústia sem fim.

12.10.05

Mil vezes se podem repetir as palavras, até elas deixarem de fazer sentido.
Tudo aquilo que era parte integrante de mim tornou-se agora num imenso, entendiante vazio. Muito mais apurada a desconfiança, mas nada mais. Resta-me manter os sentidos alerta, apesar dos gestos lentos.
Em desejo, vejo-me a chegar junto dos meus, que me recebem com perguntas nos olhos, silenciosas. Mas não esperam pelas minhas respostas: primeiro, oferecem-me o que têm de melhor para um homem que acabou de fazer a experiência do conhecimento do nada: alimento, calor e cama. Contudo, as perguntas ficarão sempre por responder, a fome será fundamentalmente outra e o sono recusar-me-á a sua visita. E não serei compreendido, apesar de toda a compreensão. Talvez seja mesmo odiado: como ter a certeza do que em mim vêem as mulheres jovens, os guerreiros que ainda não provaram o deserto? Sou de lado nenhum, sê-lo-ei sempre.
Não, estou a sonhar. E espero que não passe de um sonho mau, porque preciso de todo esse calor que nem o mais forte sol do deserto me poderá alguma vez dar.

11.10.05

Sinto uma sede que não cessa, uma fome que já nem sinto. Começo a caminhar. Os meus pés enterram-se na areia mole, a cada passada, e cada vez que avanço receio afundar-me totalmente neste chão sem cheiro, mas cheio de mistério.
Imagino uma nação oculta sob as areias, e uma infinidade de entradas para ela dissimuladas nos suaves vales entre as dunas. Imagino um homem a vir por aí fora, em viagem, e, de repente, é sugado para essa Nação Subterrânea. Cai num chão de pedra, num espaço completamente às escuras, e fica em expectativa, à espera de que o ataquem, pois é a isso que está habituado: atacar e ser atacado, matar ou morrer... Depois, lembra-se de que está desarmado. Quer dizer, tem o corpo, a vontade de viver. Retesa-se, banhado em suor, embora aqui, contrastando com a fornalha lá de cima, do ar livre, se faça sentir um frio de pedra, que lhe roça a pele e lhe atravessa os pensamentos. Pergunta ele: “quem há?” A sua voz ecoa. O negrume é total, infindo como o de um céu nocturno sem lua nem estrelas.
O homem assim aprisionado sou eu, e penso:
“Todas as saídas se fecharam. Estou num mundo secreto, e do qual não há fuga. Cheira a mortos”.
Não sei de onde me vem a certeza disto que penso, mas a verdade é que a tenho. Começa a faltar-me o ar.
Continuo a caminhar.

10.10.05

Qual o real significado de todos estes sonhos em vigília acesos? Será o verdadeiro mundo, de facto, um mundo escondido no âmago das aparências? Como ter a certeza absoluta do que penso, mesmo tendo-a? Como ter a certeza absoluta seja do que for?

9.10.05

Penso: “o meu povo”.
O deserto é como um grande rio — e este outro pensamento ajuda-me a nadar contra a corrente. Mas, enquanto rio, o deserto é animal de mil rostos, que não me deixa entender a natureza da corrente contra a qual luto. Porquê contra? Porque não há-de o próprio rio ajudar-me também?

8.10.05

Talvez eu tenha estado no centro do deserto: talvez eu esteja sempre no centro, de mim próprio e do mundo, e isso é que me dificulte a compreensão de todas as coisas.
Talvez eu tenha estado no deserto, no coração, e por isso o meu coração encheu-se de areia: agora o sangue não corre, e ue, animal de gelo, só já caminho porque o frio me conserva de pé. Talvez seja necessário que eu seja os outros, para que consiga finalmente compreendê-los. Mas entender sem ser entendido...
Quererá alguém ser eu? Será alguém capaz? Serei eu?

6.10.05

Penso: “o meu povo”.
Uma miragem de água barra-me o caminho: um lago salgado, de águas absolutamente paradas. Mergulho nele, flutuo sem fazer um gesto.
Quando regresso à margem, estou seco. Torno a olhar o lago: a água não se agitou nem um pouco que fosse. Chamo então o vento suave, e ele vem. Mas continua inpassível, o rosto do lago. Chamo, pois, o vento de tempestade. Em vão: ele ruge, assobia, sopra, mas tudo permanece igual, à superfície.
Mando o vento embora e vejo-me reflectido na água, misturado com o sol, por trás e por cima da minha cabeça. Mas o brilho da luz altera as formas, e quase não me reconheço: pareço um deus sem pátria — um deus caído em desgraça. Pergunto, em voz bem alta: “qual é o meu povo?”
A miragem desaparece, e oiço uma risada longínqua, que me estremece o peito. Envenenado, ainda. Será que tenho de sangrar todo, será que tenho de morrer para me libertar disto? Ou será que estou a enlouquecer — ironia última — com algo que não existe?

5.10.05

Pela voz do homem se faz ouvir o guerreiro, pela boca do guerreiro fala o homem. Onde, como e porquê, cada um deles? Definitivamente.

4.10.05

Para quê, tentar a morte, se todos os combates se equivalem? Mas escolherei: levarei o espírito guerreiro a mais nobres lutas, despojado de tudo o que não seja o seu verdadeiro querer.
O meu povo é: todos os homens. Há-de sabê-lo.

3.10.05

Jovem e fogoso, acho-me inesperadamente a pensar nos velhos, no respeito que se lhes tem por obediência à tradição. Há os que já dizem que é preciso tirar-lhes esse poder, silenciar toda e qualquer voz de sensatez. Quem assim fala são aqueles que nunca fizeram verdadeiros combates, mas apenas guerras cegas: sangue derramado sem fim, enormes campos de carne dilacerada e morta, onde, pela manhã do dia seguinte, as aves recomeçam a cantar, alheias à estupidez dos homens. É preciso desconfiar de quem defende as tradições, tanto como de quem as ataca. E depois desconfiar de quem desconfia. E, se for preciso destruir, que se destrua a sensatez a par da sede de sangue.
O meu povo é, mais que todos os homens, cada homem por si só, frente a frente, conhecimento a conhecimento, e pacientemente.

2.10.05

Estas as palavras de uma antiga voz:
“Andarás tempo infindo, sem nunca parar. A sede será a tua direcção, a fome o teu espírito, o céu o teu olhar, e o sol a tua provação. O teu corpo será de terra, mesmo antes de o ser, e nada saberás ao certo, nunca, nem de ti nem do mundo. O homem que viaja com a Serpente no seu íntimo é um ser perdido”.
E se assim for, realmente, como regressar? Haverá regresso possível? E regressar a quê?
Aconteceram mudanças em mim. Não é lícito pensar, pois, que também tudo o resto mudou? Mas penso também: se um objecto muda de lugar, poder-se-á dizer que uma mudança ocorreu, simultaneamente, nesse lugar? A mudança real, é por dentro ou por fora que acontece? Que coisas é que são sinais de outras? — como a estátua de um homem é um sinal do que esse homem é ou foi.
E ainda: a mudança é boa ou má? Ou melhor: como distinguir uma mudança boa de uma má? Qual o critério? Quem o define? Como?

1.10.05

Último dia, em despedida: um adeus tão triste que dói. Mas só pertencendo a isto se pode compreender.