31.1.06

PENSAMENTOS DO GUERREIRO NO CORAÇÃO DO DESERTO - uma iniciação

Continuando a publicação on line de alguns dos meus livros,
proponho desta feita o primeiro livro que editei.

Prémio de texto no concurso "O Teatro na Década", edição de 1991,
promovido pelo Clube Português de Artes e Ideias (CPAI)
Edição: CPAI, Junho de 1993
300 exemplares, 68 páginas
Depósito Legal:67071/93
ISBN: 972-957445-0-2

Livro escrito em 1985

28.1.06

Disseram-me uma vez:
“Um homem pode sempre fugir, seja lá do que for, mas nunca esconder-se”.
Ao que contrapus:
“Ou então pode sempre esconder-se, seja lá do que for, mas nunca fugir”.

27.1.06

Agora estou aqui, sozinho, sentado neste chão de poeira fina e grãos polidos, pronto finalmente para reflectir com profundidade e isenção acerca disso e de tudo o mais que me ocorra pôr em questão.

26.1.06

Mergulho na areia as minhas mãos nuas:
agarro dela uma minúscula porção, uma presença, se tanto, num breve instante, e depois, sem mais, deixo que essa imagem se liberte de mim, escorrendo vagarosa por entre os meus dedos silenciosos e imóveis, e vejo-a, sinto-a a regressar novamente ao seu corpo original e imenso, velho como o mundo.
Estou a contar o tempo.

25.1.06

Primeiro, não penso nada. Nada em concreto, penso: as ideias surgem-me aos acaso, leves e impalpáveis, sensações soltas, como o vento, ou a música, e eu deixo-as flutuar em mim ou ir por aí fora, livremente.
Depois, a pouco e pouco, apercebo-me disso, do vento, da música, do que deixo e não deixo ir ou vir, e só então começo a ter um vislumbre real, embora fugaz, de como a minha compreensão das coisas é, afinal, ainda tão fraca, tão confusa e limitada.

24.1.06

Diz-se:
“isto é o ar”, ou: “isto é a areia”, ou “isto é a água”.
Mas, ditas as palavras, ar, areia, água, olhamos em redor, e através, e longe, e o que vemos é que nada se alterou, que nada se altera realmente só com as palavras. Então, como uma longínqua e ténue luz que começasse a nascer, de súbito, nas mais profundas e insondáveis trevas, assim nós começamos também, enfim, a conseguir entender que não basta dar nomes às coisas para que o significado dessas coisas aumente, ou diminua, ou se concretize. Porque as coisas existem antes, e o que é importante é conhecer a verdadeira natureza de cada uma delas.
Todavia, dar nomes a tudo é uma das tarefas mais caracteristicamente humanas, porque só mesmo os homens são capazes de lutar e viver e morrer por coisas que apenas existem em nome, no seu espírito, nos seus desejos e inquietações.
O tempo, por exemplo: o que é ele, ao certo? Será que, ao contá-lo, o modificamos? Ou será ele que, pela contagem, nos transforma? Eis algo muito mais grave e decisivo: as transformações, as mudanças.
Nada do que nos rodeia é estático, e nós próprios somos imparáveis: tudo se move, tudo nasce, cresce, evolui e morre, constantemente. Até mesmo o deserto.
E a minha ignorância, a minha vontade de saber: como elas são grandes e inquietas.

23.1.06

Muitas vezes, o que parece não é, e o que é não parece. E por isso penso: poderá um homem sozinho dialogar? Ou então: poderá um homem acompanhado dialogar?
Revejo o espírito das minhas memórias mais terrestres, e sinto, através dele, que nenhuma destas questões é tão estranha como à primeira vista possa parecer: uma completa a outra, e ambas têm os seus fundamentos reais.
É que já estive em lugares, ditos civilizados, e vi coisas sem dúvida muito mais estranhas, que me fizeram reflectir e, com essa reflexão, aprender:
havia pessoas a falar sozinhas, e pessoas a falar umas frente às outras
e algumas das que falavam não ouviam, e algumas das que ouviam não falavam
e havia as que não falavam nunca e as que falavam sempre.
Também já estive fechado em lugares vazios e estreitos, e achei-me, de repente, a falar só, comigo, em voz alta; e estou certo de que falava, realmente, porque me ouvia. Sei bem o que estou a dizer. Tudo à minha volta me ensina a escutar, e eu sei: poderosa é a palavra e poderoso é o silêncio, mas os seus poderes assemelham-se, porque palavra e silêncio são uma e a mesma coisa. Assim, tanto podemos dialogar connosco próprios como dialogar com os outros, porque umas vezes nada nos será dito, e outras vezes nada diremos.

22.1.06

Para crescer, até fazer-se homem, um jovem do meu povo aprende, mais que qualquer outra coisa, a nadar, a caçar, a andar a cavalo e a matar. Tudo isso tem, como é óbvio, as suas doses próprias de prazer e de sofrimento. Digo isto com conhecimento de causa, porque também eu fiz essa aprendizagem. No entanto, depois de todo o tempo que já passou desde então, perturba-me ainda que o conhecimento da morte venha primeiro que o conhecimento da dúvida. Contudo, é esse saber o âmago de todo o guerreiro, e eu, como guerreiro que sou, já devia ter resolvido estas questões antigas, para finalmente viver em paz comigo próprio, sereno com o mundo.

21.1.06

Agora, aqui, sozinho no coração do deserto, pergunto-me: terá um guerreiro o direito à sabedoria que tem?

19.1.06

O que se passou com os outros? Para falar verdade, ignoro-o: um guerreiro não desvenda de bom grado o que lhe vai no íntimo, e sinais que o revelem, fá-los na areia, para que só os conhecedores os agarrem, ou o vento.
Houve os que, de facto, partiram um dia, de repente, sem dizerem porquê, nem para onde iam, como se estivessem apenas a responder a um longínquo mas irresistível apelo. Alguns não regressaram. E os que, mais favorecidos pelos desígnios do acaso ou pelo poder de si próprios, lograram achar com a vida o caminho de retorno, souberam preservar o seu silêncio. Como sempre. Nem então alguma coisa os distinguiu dos que tinham ficado, alheios àquela aventura: eram guerreiros, nada mais. No entanto, a meus olhos, parecia haver neles, agora, algo de diferente, de inefável. Uma espécie de luz perante o sol. Impossível não reparar nisso. Ou não?
Sonhos? Miragens? Esse apelo misterioso; terá sido também o que me aconteceu? Não sei. Lembro-me somente de que um dia, ao rever a história da minha vida já vivida, descobri que as perguntas eram ainda em número muito superior às respostas. Sofri fantasmas temíveis, mas a ninguém disse dessa dor fria e quente no coração da cabeça, porque me apercebi a tempo de que havia uma forma de a vencer que me pareceu bem mais simples e eficaz que qualquer desabafo. Assim, logo na noite seguinte, concretizei a minha decisão: coloquei sobre o cavalo as minhas armas e tudo o mais que me era necessário, bem pouca coisa, afinal, montei e parti.

18.1.06

Não há história ou lenda, seja na pradaria, na montanha ou à beira-mar, no céu por cima de nós ou no céu dos nossos sonhos, não há história ou lenda, digo, que se faça ou cante sem a nobre presença do cavalo.

16.1.06

Lembro-me ainda de quando eu tinha apenas o tamanho de um dos meus braços de hoje, ou pouco mais, e nada era misterioso, porque, perante mim, o mistério se assumia como a própria essência da totalidade.
Pelo céu, e acima dele, fendendo-o com as suas asas infinitas e poderosas, voava então, solitária, a grande águia de prata. Muitas foram as vezes que a olhei, quando ela passava a caminho das suas secretas missões. Em sonhos de sonâmbulo, via-me igual a ela, ou pelo menos a voar a seu lado, livre, por cima do mundo, e tal fantasia, de algum modo, justificava a minha existência.
Mais tarde, disseram-me:
“A águia é o espírito de deus. Quando ela voa, deus olha para nós.”
Não entendi o significado daquelas palavras ditas num murmúrio, mas calei a minha vontade de perguntas, porque quem falara era muito mais experiente do que eu, devia saber bem o que estava a dizer e não me iria dar, por certo, nenhuma explicação.

15.1.06

Um dia, sem razão aparente, fiz algo que ainda hoje só o meu coração conhece. Estava na montanha, sozinho, quando vi a águia a passar, uma vez mais. Não pensei, estou certo disso: coloquei uma flecha no arco e, rápido como o pensamento, disparei-a para o alto. Atingi a águia. Corri para ver onde ela caía, e cheguei lá a arfar, mordido pela vegetação magra nas margens do caminho que não havia. Mas nada senti, naquele momento, porque ela ali estava: as penas de prata empapadas em sangue ainda quente, os olhos ferozes de água gelada, as garras hirtas; vencida a meus pés, já morta. O espírito de deus estava morto e ninguém sabia. Recuperei a minha flecha assassina, limpei-a, marquei-a de repulsa, ou prazer, ou susto, e guardei-a. Quanto ao corpo inútil do animal, esse espírito incompreensível, lancei-o, a custo, que pesava quase tanto como eu, para o esquecimento de uma ravina funda, aberta na rocha nua. Mas à noite, e durante muitas luas, os meus olhos andaram baixos. Só na escuridão aquecida da minha tenda, às voltas na procura do sono difícil, me foi possível encontrar algum do conforto e da tranquilidade que precisava. Contudo, nada de mau aconteceu, nem a mim nem aos do meu povo e, com o tempo, a minha dor, a minha culpa, o meu medo, a minha vitória, acabaram por se desvanecer, como se desfaz no ar imenso o fumo que sobe das fogueiras.

14.1.06

Se eu disser aqui, como se diz em alguns lugares do mundo tão desolados como este: “Deus morreu”, terá isso algum significado? Terá Deus significado?

12.1.06

Torno a afogar as mãos na areia, fundas e duras, como numa nuvem de secura e oiro. Depois, vejo-me a erguê-las de novo, grandes contra o céu azul-de-fogo, mas a abrirem-se já, esvaziando-se lentamente de tudo, grão a grão, em fios luminosos como diamantes.
E quando, muito tempo depois, a areia finalmente acaba em mim, noto que qualquer coisa dura e pequena me ficou na mão esquerda, retida pelo crivo grosseiro desses dedos imóveis e silenciosos de há pouco. Os meus dedos. Observo-a mais de perto, coisa dura; vejo-a. “Vejo-te, cois pequena”, penso. É um osso. “És um osso”.
E penso: “Isto já foi um animal”. Um homem, talvez. Um qualquer ser vivo. Vida. Outra matéria.
E este osso — que não passa, aliás, de um minúsculo, breve fragmento — faz-me recordar o meu cavalo, que ficou tão e tanto lá para trás, vencido pela sede, pelo calor e pelo cansaço. Penso nos abutres que hão-de vir sobre ele — que já vieram, sem dúvida — , e na sua orgulhosa carne de belo cavalo, que nem tempo vai ter de apodrecer em paz; e penso também naquilo que, enfim, vai restar dele: ossos.
Os ossos, e nada mais, definitivamente impedidos de se afundarem no esquecimento rápido pelo crivo dos dedos da terra, serenos, sedentos.
E é sempre o tempo — espécie de deus — , as infindáveis escadarias que o percorrem. Porque, no fundo, o tempo é lento e numeroso, como todo este mar morto de areia aparentemente viva. Nós, apenas nós, que temos consciência, é que somos demasiado fugazes, no seu seio. Complicados. Precisamente porque temos essa consciência. Porque temos tudo, e Tudo é Nada — o tudo-nada de não nos conseguirmos ver por fora a nós próprios, mas conseguirmos ver os outros, que também nos vêem, mas que não têm a nossa forma de pensar, ou sentir.

11.1.06

A minha história já teve, portanto, o seu cavalo. Mas poderá ela ter ainda — e eu nela — outro cavalo? Ou cada cavalo terá a sua história própria, e somente essa? De outro modo: será o meu cavalo próprio, ou Cavalo, apenas? Ou: acabará a história por se tornar lenda? Terão as lendas realidade? Creio que nada disto tem a importância que eu lhe estou a dar.
Paz na minha memória ao espírito do Cavalo.

10.1.06

Sou capaz de ficar tempo infindo sentado sempre na mesma posição, sem cansaço nem derrota. Não me mexo. O calor seca. O vento sopra poeira leve para cima de mim e, a pouco e pouco revestido por essa cor que se vai uniformizando, acabo por me confundir com a paisagem. Mil paisagens sou.

9.1.06

Quando cheguei à entrada do deserto, pensei: “eis o deserto”. Agora estou no meio dele, e já não penso nada. O deserto é o mundo, o mundo é. Só quero pensar o que não penso — o que não pensei nunca, mas sei, sem saber.

8.1.06

Junto coisas sob as minhas pálpebras fechadas. Sinto todo o calor, a roupa molhada de suor que se cola à pele, mas nada me está a incomodar verdadeiramente. Talvez porque tenha pensado em maiores dificuldades. E pensei-as porque nenhum homem se habitua facilmente aos caminhos fáceis: consome-se muito tempo a não acreditar nisso — a descobrir que não se pode e não se deve acreditar, porque qualquer crença, mais tarde ou mais cedo, acaba por só conduzir ao sofrimento, até mesmo o da alegria.

6.1.06

Abutres, coiotes, cães, águias, serpentes, cavalos: estes os animais. E, algures, um mistério qualquer que só a eles pertence. Quanto mais penso nisso, mais me convenço de que esse mistério diz respeito não só aos animais que conheço, mas a todos eles. Acontece, no entanto, que há animais em que o mistério é tão intenso que se tornou já a sua realidade dominante. Ou será que o mistério — a magia — dos animais não passa, afinal, de mais uma das fantasias dos homens, apenas porque vivem tão próximos deles e já não conseguem entendê-los?
Do mesmo modo que se vai tornando cada vez mais difícil entenderem-se a si próprios.

5.1.06

E agora, aqui sozinho, pergunto-me também: terá um guerreiro direito ao Amor?
E pergunto-me: terá ele direito à Paz? E pergunto-me ainda: terei eu direito à Felicidade? Ao Pensamento? À Vida?

4.1.06

Assim vamos nós fixando no nosso íntimo essas palavras que, pela sua natureza, possuem (ou parecem possuir) um significado maior. Todavia, ao dizê-las — Vida, Morte, Paz, Felicidade, Liberdade, Amor, ... — é lícito que, simultaneamente, nos interroguemos acerca do seu significado preciso. O que quero dizer é isto: será necessário definir a vida para que a vida exista? Será necessário definir a liberdade para que a liberdade exista? E o amor? E a morte?

3.1.06

O guerreiro é uma forma informe, um gesto, uma espécie de Sombra. Agora, o que eu me pergunto é: será a Sombra inútil? Olho para cima. Não creio. Pois não é verdade que, a partir dela, se pode demonstrar a luz? À sombra descansa-se. Vejamos então: e o que é a Luz?

2.1.06

Olho para cima e o Sol cega-me. Não estou a descansar. O Sol poderoso é, é Luz. A Luz é isto: ficar cego e ver. A Luz. (Sorrio).

1.1.06

(Penso: terá um guerreiro direito a um Sorriso? A dá-lo? E a recebê-lo, pois?)