30.11.05

Não conheço o amor, mas todas as minhas ideias puras têm um corpo de ternura. Significará isso que tais ideias são expressão de um Ideal? E será um Ideal a Perfeição?
No entanto, também algumas das mais simples coisas da vida me enternecem, a ponto de comigo próprio me surpreender: a mãe loba com os seus filhotes, a pradaria imensa e despovoada, uma cascata que mais abaixo se transforma em lago (e no qual me posso banhar), uma flor vermelha a crescer numa rocha, a neve branca de luz da montanha...
Será a mãe loba a Perfeição? Será Perfeição a pradaria? A cascata? A flor? A neve? Será Perfeição as coisas serem como são?

29.11.05

Os homens antigos descobriram a bebida que dava a embriaguez dos sentidos, e o fumo que provocava a distorção da consciência. Os guerreiros experimentaram essa bebida e esse fumo, alguns deles indo da descoberta ao abuso, sem conhecerem prudência.
Alguns enlouqueceram, a ponto de começarem a clamar pelo sangue derramado de todos os seus semelhantes. Tiveram de morrer.
Outros ainda, continuaram a beber e a fumar, como se come e se dorme, mas com sobriedade, e disseram que era nessa parcimónia que residia a verdadeira liberdade. Os velhos lamentam-se quando não há comida, ou é demasiado o frio, ou são muitas as mortes entre os guerreiros jovens, e com eles fazem coro de aflitos as mulheres, e crescem de medo mudo os olhos grandes das crianças. Mas o guerreiro, porque é digno e consciente, só se lamenta quando não há liberdade. E quando não há liberdade, o guerreiro combate. Só na luta se conquista o que se é, e o que se quer. Sou guerreiro. Sei. Também eu já me embriaguei com a tal bebida, aspirei o tal fumo. Mas penso: cada coisa no seu lugar, cada acto ou experiência nos seus tempos próprios.

27.11.05

Pergunta-se: “o que é a liberdade?”, e não se alcança explicação que baste. Pura, é excessiva: o espaço onde cabem todas as realizações. E, sem ela, um homem mais não é que um pedaço de pedra desencantada. Sem liberdade, um homem tem, talvez, as palavras que são as da fórmula certa, e os gestos talvez exactos; mas de nada disso sai a magia que só a liberdade concede.
Da pedra desencantada não brota a água pura das fontes.

26.11.05

A liberdade do guerreiro será apenas a liberdade de matar? Será que esta liberdade existe?
E existirá, para o guerreiro, num mesmo tempo, a liberdade de conceber vida — de criá-la?
Em que é que o guerreiro mais se aproxima do absoluto, na sua prática de liberdade?
Diz-me, vento; diz-me, areia: tem a morte alguma importância?

25.11.05

O vento é igual a fios de música através do brilho cristalino dos grãos de areia: canta sem palavras, e por isso não fala, e por isso me faz sentir inútil, nas minhas palavras.
Contudo, quando na montanha o vento sopra sobre a cabanade pele e as brasas da fogueira, quando é forte a impressão de que alguma coisa está a ser dita, fácil se torna julgarmos que é o vento que tem voz faladora.
Agora que penso nisso, também me parece razoável crer que o múrmurio qu oiço possa ser a conversa entre homens muito distantes, algures, e que é o vento que a trás até nós. Depois o vento dá meia volta e regressa a esses homens e diz-lhes, com a nossa voz: “estão a ouvir o vento?” Porque isso foi o que nós dissemos.
Estamos a comunicar.

24.11.05

Sonho uma Floresta de Ouro, onde Pássaros de Diamante cantam o fim da Cobiça.
Ou então não Sonho, e tudo é real.

23.11.05

Certa vez, um ancião de terras estrangeiras disse-me: “a vida é um império no palácio da morte”.
Não lhe dei resposta: não a tina. Mas hoje, lembrando essas palavras, penso:
Se a vida é um império, quem é o imperador? E qual a grandeza de um palácio? E qual a dimensão da morte?

22.11.05

Um sonho virá em visita. Estarei acordado. Acordarei num sonho acordado. Sonharei.

21.11.05

Comunicar... Darmo-nos a entender, entender os outros, deve ser esta a coisa mais difícil que existe para ser feita. E o que é estranho é que se trata de uma coisa de todos os momentos, absolutamente necessária. Um homem não pode comunicar apena consigo próprio: se o fizer, chega um ponto em que só o seu mundo interior me importa; e quando, por qualquer razão, é inesperadamente chamado ao mundo dos outros, que é o mundo de todos, afinal, ei-lo que não entende, e só diz: “mas onde estou eu?, o que é isto?, o país-do-que-não-existe?”
Embora tudo exista.

20.11.05

Comunicar... Diz-se, explica-se a imperfeição. Há gestos especiais; e palavras, quase tantas como as estrelas. Apesar disso, são ainda demasiados os erros contidos nos nossos actos de contacto e entendimento. A perfeição seria os próprios tocarem-se. A clareza, a luz. Não poder mentir, nem aos outros nem a nós... Mas como é que os espíritos se podem tocar? Cada vez são mais as coisas que os separam, menos consideradas as que os unem... Os meus semelhantes são cada vez mais diferentes de mim. Mas é uma diferença que não é boa, porque confunde a semelhança paralela, que é real, forte, e existe para lá de qualquer acaso. No entanto, quantos movimentos e palavras para exprimir a mais simples realidade, o mais ligeiro pensamento.
“Adeus”, por exemplo. Dizer adeus é tão complicado... Primeiro, pode julgar-se que basta apenas voltar costas. E é isso que se faz. Só que, depois, descobre-se que aquilo a que se virou costas deixou sinais em nós, marcas que não se deixam apagar — embora se vá já de frente, seja como for, para qualquer coisa nova. Partir é separar. Chegar é o derradeiro instante de uma despedida. Ou não: tudo, assim, se pode pensar. Tudo é evidente e inalcançável. E diz-se, talvez: “pois não é a própria natureza da vida que determina a nossa certeza da morte?”
Quanta dor na simplicidade.
Quanta alegria.

18.11.05

É o meio do dia, o sol a pino. Dispo-me. Estou despido. Estou nu. E nu, serei ainda um guerreiro? Ou apenas um homem? Ou um guerreiro é nada mais que um homem? — de uma vez por todas.
Seja como for — a questão é sempre outra —, nu, sob o sol a pino.
Possível, deserto, impossível. Necessário, tudo.
Agora danço. Danço e canto. Sou o espírito fugido ao feiticeiro, sou a própria música. Chamo a ilusão:
“Vem, vem. Serpente-cobra, vem. Morde”.
Danço. É preciso, a serpente, a louca nudez ao sol de morrer em chamas, nu, sempre a cantar, sempre a dançar.
Meio do dia, exausto. Mas, finalmente, a cobra ouve, e vem. A sua cauda canta agora comigo — o meu silêncio. E na sua boca, dança-lhe a língua em vaivém, com silvos de perigo. É no seu olhar, no entanto, que me prendo: aquele frio, aquela determinação... Um olhar de deus-fascínio.
Estamos próximos, cada vez mais frente a frente. Reconheço algo do espírito de um guerreiro nesses olhos metálicos e ferozes. Serpente, ouves-me? Vem. Dança comigo. Morde.
E ela vem, agradada de tão faminta entrega. Rodeia-me, quase me roça com a sua pele de escamas de neve. E, de repente, morde.
Dor lancinante, que me derruba. Sinto cada um dos instantes. Só um gesto consigo: o de espalhar pelas minhas feridas vivas, em plena sangradura, os unguentos mágicos.
A cobra desapareceu.
Agora, esperar — em outra espera. Dor, cada vez mais dor. Febre. Sol. Tudo queima. É preciso resistir.

17.11.05

Mais instantes, distintos, iguais. Nada acontece. Mas que será do meu pensamento?
Por trás dos meus olhos, só encontro lágrimas, lâminas, gritos. Imensa estranheza de nada.
Por dentro dos meus olhos, em frente, tudo está num banho de névoa, tudo é luz.
Sinto-me atirado de uma parede para outra, mas esta inimizade não é minha. Eu sou sem importância, aqui.

16.11.05

Penso: se eu morrer, a minha carne será devorada pelos abutres.
E, assim sendo, o que ficará de mim nos meus ossos? Porque os ossos ficam, sempre, durante demasiado tempo...
Não. É preciso não morrer.

15.11.05

E o tempo não passa.
Quero sentir as minhas armas perto de mim. Onde é que elas estão? Não as vejo. Não vejo. Sou obrigado a palpar todo o terreno em meu redor. Areia. E isto? A minha roupa. Mais ao lado. Sim, ei-las agora. Eis a minha respiração, que a sinto nas mãos: a faca, o machado, o arco, as flechas.

13.11.05

A faca. Corto-me com ela, nas costas da mão direita: um golpe delgado, curto, superficial. Continuo cego. Mas com os dedos da minha outra mão, sinto o sangue quente, doente, envenenado. O meu próprio sangue. Penso: a faca não sente. Nada. É isto respirar?
Toco o machado, que também nada sente. Toco as flechas, sinto-lhes as pontas aguçadas — a que chamo “mensageiras da morte” — , e toco as penas, na outra extremidade, que servem para lhes dar direcção no voo. Estas penas já pertenceram a aves — animais vivos. Animais que voavam. As flechas não voam. As flechas cortam o ar, vibrantes, zunem, atingem alvos, matam, mas não voam.
Onde se perdeu a minha serenidade? Que respiração é esta?
Agora estico a corda do arco e depois solto-a de novo, como se atirasse. A corda vibra, e esse seu som em movimento, tão especial, sobrepõe-se ao som, à voz do próprio deserto. Aproximo o ouvido. Sim, este arco canta, com a sua alma única — mas a sua canção já não me embala.
De repente, sinto-me absolutamente nu, nu até por baix oda nudez. E, embora com os olhos nada veja, começo a ver tudo. A serenidade regressa, perde-se a importância, a luz basta.

12.11.05

Deito-me, a cabeça perdida sobre o volume da minha roupa reencontrada. (Ainda) penso: estes tecidos têm cheiros, manchas, sinais. É como se contassem histórias. Mas valerão elas a pena? Não sei. Já não sei.
Houve um tempo em que os homens, guerreiros ou não, andavam sempre nus. Talvez então a pele recolhesse bem as verdades, melhor que qualquer roupa, e as histórias que daí fluíam fossem boas e valiosas. Pois não são essas histórias as que servem agora os mistérios, a aprendizagem dos jovens, a conduta dos grupos?

11.11.05

Começo a compreender, e receio essa compreensão. É algo dentro de mim, renascimento perante o qual ainda só sei pôr-me de fora.
Digo: um guerreiro é um ser natural. Mas estará ele em consonância com toda a natureza?

8.11.05

Sinto o veneno da cobra a começar a fazer efeito — a tornar-se verdadeiro. Repentinos tremores gélidos, espasmos dos músculos ferventes, um enorme mundo oco dentro da minha cabeça. Mas não tenho medo. De nada serve o medo, aqui.

7.11.05

Tenho a impressão de já me terem falado de tudo. Só disto, talvez por ignorância, guardaram segredo, cercado por muros de silêncio. Mas o que é o silêncio senão todas as palavras, todos os sons, todas a imagens ao mesmo tempo? Há quem por isso mesmo o tema, por essa totalidade alucinante e dolorosa; e são esses os que o usam para nele esconderem as suas baixezas. Mas todo esse vazio, todo esse ódio no espírito, criam marcas à superfície — sinais fáceis de reconhecer, para quem quiser aprendê-los e aprender a defender-se: certos olhares que recuam, certos modos de fazer que vacilam, certas palavras que resvalam em si próprias... ou o contrário, em grande alarde.
O silêncio genuíno é puro.

6.11.05

Meio da segunda metade do dia: retomei a consciência do tempo a passar.
De vez em quando, parece-me ouvir uma voz a falar — e oiço — e é o sol, a dizer:
Agora começo a enfraquecer, a ficar velho. Vou descrever a minha própria morte, mas amanhã regressarei. Aqui nos encontraremos de novo, para reatarmos a nossa conversa: ainda há muitas coisas a desvandar, neste nosso confronto”. Aceito, embora não asaiba bem o quê.
É cedo. Continuarei a esperar.

5.11.05

Um frio inesperado invade-me — de fora, fora do tempo —, como se fosse ainda, ou já, o tempo dos gelos duradoiros. Como é que um só dia pode durar tanto?
Nunca tinha realmente dado por isso. Conhecia apenas aqueles momentos únicos em que, por exemplo, uma faca de guerra ficava suspensa frente ao meu pescoço, tempo nenhum e infinitamente: tudo parava então, e toda a minha vida, de repente, se recriava ali, lembrada.
Sobrevivi a essas duras provas, e quase as tinha esquecido já. (Esquece-se depressa — quando se quer, quando é preciso, quando assim convém). Mas nunca se esquece. E tudo se sabe, sempre.

4.11.05

Penso:
“Viver tudo num só dia, e depois morrer”.
Mas será possível? E justo? Quer dizer — natural?

3.11.05

Ergo-me. Tudo é doloroso. Por onde andará a vida? Talvez eu nada esteja a fazer aqui. Toco-me:
Isto são as minhas entranhas. Não há nada nelas. Ou há: isto, que é o coração a bater.
E isto: é o ar — e eu respiro. Estou vivo.
Não faz sentido. Talvez nunca tenha feito.
“Ergue-te mais, guerreiro”, diz-me o meu peito de mim, apesar de mortalmente cansado.
E eu obedeço, para longe a morte: muito a custo embora, ergo-me, absolutamente. Que se faça o que o peito disse, digo: ele falou pela voz do guerreiro que me está no sangue, rio da minha vitalidade, veneno primeiríssimo contra o qual nenhum unguento alcança eficácia. (E, no entanto, na compreensão que atingi, as armas já não voam, já não falam, já não cantam... Que guerreiro sou, afinal?)
Uma nova força, que desconheço, reinstala-me na dança. Impossível? Já nada o é: porque poderosa é a carne que me sustenta, e mais poderoso ainda o espírito que a anima.