30.12.05

Dantes, dizia-se: “fumemos o cachimbo da paz”. Fumava-se o cachimbo e a paz tornava-se realidade, tecido com o qual se vestia a existência. Um homem podia acreditar nela. Podia-se acreditar em tudo — pelo menos até à guerra seguinte.
Agora não. Andamos todos com uma arma apontada ao peito, e dizem-nos: “a paz é isto” — e é uma arma. Algumas têm o gatilho leve, e há gente com dedos nervosos. Esta guerra, eu não a entendo. É que, às vezes, um guerreiro quer apenas seguir o seu próprio caminho, sem lutas nem cachimbos de paz para partilhar. Muito menos ainda com uma arma apontada ao seu peito.

29.12.05

Já aconteceu um homem penetrar uma gruta funda e escura — desconhecida — , daquelas que descem até às entranhas da terra, do silêncio, da ausência. O homem — curioso, corajoso — foi andando, ver o que dava. E aconteceu:
numa curva no seio da rocha, foi ele dar com outro homem, que nesse momento se encontrava a cozinhar um bicho sem olhos numa fogueira mal acesa. E o homem que cozinhava não se mostrou surpreendido com aquela intromissão inesperada, e até falou, mas as suas palavras não foram entendidas, porque pertenciam a uma língua do outro lado do mundo.

28.12.05

Às vezes quer-se apenas o sossego de um lugar solitário. Mas já nãos se pode: todos os covis e tocas, todos os infernos e paraísos, todos os lugares do mundo estão agora abertos a todos os homens. E os homens todos são já muitos, e de muitas e diferentes atitudes.
Ninguém te conhece, mas mesmo assim vêm ter contigo, e fazem-te perguntas, e mexem-te na roupa, no corpo, nas crenças e nos pensamentos, e por isso é cada vez mais difícil um ser manter-se em serenidade na sua simples existência.

26.12.05

Sinto-me capaz de entoar um canto novo, novo de ser meu. Mas não sei ainda se há-de ser um lamento, uma oração ou um cântico de alegria. Nada tenho a lamentar, nenhuma divindade a quem dirigir uma prece, nenhumas alegrias a exultar.

25.12.05

Sem cor — sem decisão de objectivo, pois —, a voz vai-me nascendo, como um fio de água, pela cascata jovem da garganta aberta, e depois torna-se uma serpente, que desce por mim até à areia e vai perder-se nos confins do deserto.

24.12.05

Invadiu-me uma visão:
milhares de guerreiros penetravam, como eu, este deserto, cada um por sua porta; todos eles vinham ao mesmo, que era vir a nada, e agora estavam sentados por aí, algures, imóveis, a pensar e a sentir coisas semelhantes àquelas que eu próprio estou a pensar e a sentir; não nos víamos uns aos outros e, por mais que andássemos, qualquer que fosse a direccção, nunca nos encontraríamos aqui, os nossos caminhos nunca se iriam cruzar.
A raça dos guerreiros está a desaparecer.

23.12.05

Agora, passado um tempo que não sei, essa visão mantém-se ainda, como um sabor na boca do espírito, e magoa-me não sei o quê, nem onde. Será a isto que chamam a angústia?
Contudo, depois, penso: haverá mesmo uma raça de guerreiros, ou será cada guerreiro a sua própria raça?)

21.12.05

Quando eu era apenas um pequeno filho de homem, contavam-me amiúde histórias mágicas, as mais antigas. Ouvi muitas vezes aquela que falava do Grande Guerreiro, nosso Pai e Senhor. O Grande Guerreiro era o Deus da Guerra e da Honra na Luta, me todas as pradarias do País do nosso Povo.
Hoje, e embora a saiba de cor, já não sou capaz de repetir, acreditando-a, essa história fabulosa e heróica, tantas vezes ouvida com admiração, imaginada como crença.

20.12.05

Penso: “o meu povo”. Penso nos feiticeiros, nas suas máscaras de ritual:
o Demónio Branco, que era o Cavalo Selvagem, chefe da Manada Livre; o Demónio Negro — a Serpente, umas vezes, ou o Urso Gigante do Norte, outras; os Espíritos do Lar; o Cão; os Cem Nomes; a Águia, guardiã da vidência e da imortalidade...
Penso então, também: será o meu povo aquilo que se abriga debaixo de cada uma dessas máscaras? Serão as máscaras as mais verdadeiras imagens? E se as máscaras caírem, haverá mesmo homens por baixo delas? Quer dizer: é possível que haja um povo de homens?
E nova pergunta me surge, de imediato, nascida de todas as outras já feitas: será possível que as Histórias e as Lendas não passem de Mentiras hábeis, forjadas na sucessão e no segredo dos tempos? E se assim for, quem é que as conduz e inventa: o Sonho, a Necessidade ou o Medo?

19.12.05

Em certas noites suaves, quando estão as famílias todas reunidas, ao redor da fogueira grande, surge, mais elevada que as outras, a voz de um jovem, ou de um homem feito, ou de um velho, e essa voz diz, por exemplo:
“Sonhei isto: eu ia a caminhar junto a um precipício e, de súbito, um pé escorregou-me, e comecei a cair, a cair, e caí para o abismo. Mas enquanto estava nesse apuro, e quando pensava já, se bem que de uma forma difusa, na minha morte tão iminente, nasceram-me umas asas nas costas. Assim, comecei a voar, com tanta naturalidade como se o fizesse desde o instante do meu nascimento, e tornei a subir, até terra firme, e retomei o meu caminho, com maior prudência. As asas, essas, voaram de mim para longe”.
Findo o relato, logo alguém se adianta a explicar o sonho, como se isso o explicasse:
“Foste visitado pelo Espírito dos Viajantes. A Sorte protege-te”.
Assim se sonha o próprio sonho, em longas conversas. Mas será sonho o que se vê sem olhos, quando se está acordado? Terá sido um sonho assim, a minha visão de há pouco? Mais: terei eu tido uma visão? (Quais as diferenças e as semelhanças entre uma Visão e um Sonho?) Ou tratou-se apenas do cansaço, a rodear-me com os véus sedutores do ilusório sono? É que o cansaço trai, e eu fico sem entender se é lícito retirar algum significado concreto destas imagens que por vezes me assaltam o espírito, embotando-me a aparente certeza dos sentidos.
Penso: podem ser os Antepassados a comunicarem comigo, ou o Grande Espírito, ou um dos Demónios, ou o Grande Guerreiro. E penso também: ou pode ser nada. E então afasto tudo com uma bofetada no ar. Às vezes, não é o pensamento que nos dá a solução.

18.12.05

O Sonho move os Puros, o Tempo enche-os de fantasmas, a Construção destrói-o.
Nos espíritos dos homens, pelos caminhos que eles percorrem, é aí que a Necessidade assenta os seus arraiais de luxo e miséria. A Necessidade fala-nos ao Coração: pura ainda quando exige o Ser, é já dolorosa ao dizer das Fomes. Assim se desvendam e crescem os fantasmas do Tempo, que tudo fazem vacilar e apodrecer: o espírito do homem amolece, pelo uso e pelo vício (mesmo que, pelas mesmas razões e sem contradição, endureça), e ao acaso, jogando forte, leva-o por vias em que os meios se confundem com os fins, e de tal modo que a boca, ao falar, não traduz o Coração.
A Necessidade é leviana, o luxo do Poder corrompe. Há belas casas que, nas traseiras, abrem para abismos. Ou, dito de outro modo: não há nada absolutamente bom, nada absolutamente mau, não há nada absolutamente. Não há nada, ainda.

16.12.05

Guerreiro é o que consegue falar com ele, ao combatê-lo. Guerreiro é o que não teme o medo, o que não deixa que o medo o traia. Guerreiro é o que o enfrenta. Guerreiro é o que vence.

15.12.05

Assim, afirmo: um guerreiro aumenta o seu prestígio mais pelas vezes que vence o medo que pelo número de mortes que, segundo as circunstâncias, é capaz de conduzir, no medo da sua própria.

13.12.05

Traição se diz da morte inesperada, quando ela se vem intrometer no nosso sono, ou quando não se pode voltar as costas a um homem sem risco de vida, ou quando, acreditando-se num engano, se descobre que ele o é, ou quando — de novo o digo, para que seja esquecido — alguém nos corta o caminho com uma arma na mão e na outra um sinal óbvio ou incompreensível, mas que significa sempre: “proibido passar”.

12.12.05

Não: nada dever ser proibido, porque um homem tem de experimentar tudo o que quiser, a fim de compreender. Muito menos deve ser proibido a um guerreiro fazer seja o que for que seja da sua natureza, porque os guerreiros necessitam desesperadamente de ser homens, serenamente.

11.12.05

Tenho um cantil em pele cheio de água quente (água aquecida pelo sol, digo), três pedaços grandes de carne seca e um pão duro. Histórias, não. E é com isto que vou ter de sobreviver.
Agora, acaricio as minhas armas, uma a uma. Esta é o punhal, esta o arco, isto são as flechas. As minhas armas são habitadas por um espírito que lhes é próprio, e esse espírito chama-se Silêncio. Sempre ele.

10.12.05

Eu sou um guerreiro, e o guerreiro que eu sou pensa: “o guerreiro precisa de uma companheira”. Para logo de seguida pensar também: “mas para que precisa ele de uma companheira?”
Será esta uma das razões por que aqui estou? Ou a razão da minha presença aqui será tão vaga e tão ténue como esta poeira que o vento levanta e leva, este canto que o vento faz?
(Perceber porque se parte será perceber também porque se chega?)
E o que é uma companheira? A cas dos filhos de um homem? O mistério da nudez e da carne acesas? Aquela que entra na vida de um homem para lhe abrir os olhos e que, quando a morte chega, lhos fecha?

9.12.05

Há povos em que o Espírito da Mulher se tornou Divindade: divindade feminina que, aparentemente, a realidade não denuncia, pois também eles têm guerreiros, velhos e crianças. Viverão esses povos melhor que os outros? Ou será que a vida não se altera, quaisquer que sejam as formas que asuma?
Lembro-me das palavras de um velho do meu povo, que agora já não conta para o número dos que existem: “dentro de cada guerreiro habita uma mulher, e dentro de cada mulher cresce um guerreiro”. Mas isto foi dito quando a guerra era a verdade de todos os dias, na busca da paz (não em busca desta coisa podre que não é luta nem descanso), e agora já não sei.

8.12.05

Qual a pior coisa do mundo? O guerreiro sabe: é a falta de coragem. E a mentira. E o medo. O guerreiro sabe.

7.12.05

E a melhor coisa do mundo, qual será?
Isso, o guerreiro não sabe. Só sabe que se deseja sempre melhor que o melhor, para que melhor tudo seja.

6.12.05

Agora o dia começa a chegar ao fim. O sol vai morrer no horizonte, esconder-se debaixo das areias, vai vir o frio. Esconder-se-ão também as serpentes cantantes e os escorpiões.
Agora não me posso mover. Ponho apenas a manta sobre as costas e assim fico. Nem sequer sei se posso dormir. Mas acredito que o corpo mo dirá. Se não me trair, ele também.

3.12.05

A noite passou, e quase não dei por ela. Tenho os músculos rígidos, de os ter quietos, mas estou preparado para tudo. Esta é, aliás, a sensação mais simples e mais constante num guerreiro: a de estar sempre preparado para tudo.

2.12.05

O que é que nos torna mais vulneráveis: a doença, os sentimentos sofridos ou a incerteza no pensamento? Ser-me-ia muito mais cómodo crer que o que me enfraquece é a existência dos outros homens — o mundo que os homens criaram por cima deste mundo já criado. Mas sou obrigado a reconhecer, e mais vezes do que gostaria, que a presença dos outros homens me ajuda a viver, e a crescer, e a recobrar forças. Fico sem certezas, e só penso: que ninguém fez o mundo, que só os homens existem.

1.12.05

Pela noite, fora e dentro, acontecem estrelas. É bom poder sonhar que as estrelas são lanternas que guerreiros do céu transportam nas mãos acesas, através do espaço aberto, através de toda essa grandeza sem fim que magicamente nos rodeia e engloba, tão sem medida, esmagadora e bela, que não é possível percebê-la. Todavia, se este sonho tivesse um fundamento real, o que estariam todos esses guerreiros a fazer ali? Que combate seria o seu? Para quê tal vigilância?
Mas os sonhos são mistérios — acorda-se deles na solidão de não se conseguir quaisquer respostas ao que significam, ao wue propõem —, e só são bons enquanto duram.
A quem sonha, não devia ser possível acordar. Ou então, não devia ser possível sonhar. Para dar fim à destruição sem sentido. De uma vez por todas.

30.11.05

Não conheço o amor, mas todas as minhas ideias puras têm um corpo de ternura. Significará isso que tais ideias são expressão de um Ideal? E será um Ideal a Perfeição?
No entanto, também algumas das mais simples coisas da vida me enternecem, a ponto de comigo próprio me surpreender: a mãe loba com os seus filhotes, a pradaria imensa e despovoada, uma cascata que mais abaixo se transforma em lago (e no qual me posso banhar), uma flor vermelha a crescer numa rocha, a neve branca de luz da montanha...
Será a mãe loba a Perfeição? Será Perfeição a pradaria? A cascata? A flor? A neve? Será Perfeição as coisas serem como são?

29.11.05

Os homens antigos descobriram a bebida que dava a embriaguez dos sentidos, e o fumo que provocava a distorção da consciência. Os guerreiros experimentaram essa bebida e esse fumo, alguns deles indo da descoberta ao abuso, sem conhecerem prudência.
Alguns enlouqueceram, a ponto de começarem a clamar pelo sangue derramado de todos os seus semelhantes. Tiveram de morrer.
Outros ainda, continuaram a beber e a fumar, como se come e se dorme, mas com sobriedade, e disseram que era nessa parcimónia que residia a verdadeira liberdade. Os velhos lamentam-se quando não há comida, ou é demasiado o frio, ou são muitas as mortes entre os guerreiros jovens, e com eles fazem coro de aflitos as mulheres, e crescem de medo mudo os olhos grandes das crianças. Mas o guerreiro, porque é digno e consciente, só se lamenta quando não há liberdade. E quando não há liberdade, o guerreiro combate. Só na luta se conquista o que se é, e o que se quer. Sou guerreiro. Sei. Também eu já me embriaguei com a tal bebida, aspirei o tal fumo. Mas penso: cada coisa no seu lugar, cada acto ou experiência nos seus tempos próprios.

27.11.05

Pergunta-se: “o que é a liberdade?”, e não se alcança explicação que baste. Pura, é excessiva: o espaço onde cabem todas as realizações. E, sem ela, um homem mais não é que um pedaço de pedra desencantada. Sem liberdade, um homem tem, talvez, as palavras que são as da fórmula certa, e os gestos talvez exactos; mas de nada disso sai a magia que só a liberdade concede.
Da pedra desencantada não brota a água pura das fontes.

26.11.05

A liberdade do guerreiro será apenas a liberdade de matar? Será que esta liberdade existe?
E existirá, para o guerreiro, num mesmo tempo, a liberdade de conceber vida — de criá-la?
Em que é que o guerreiro mais se aproxima do absoluto, na sua prática de liberdade?
Diz-me, vento; diz-me, areia: tem a morte alguma importância?

25.11.05

O vento é igual a fios de música através do brilho cristalino dos grãos de areia: canta sem palavras, e por isso não fala, e por isso me faz sentir inútil, nas minhas palavras.
Contudo, quando na montanha o vento sopra sobre a cabanade pele e as brasas da fogueira, quando é forte a impressão de que alguma coisa está a ser dita, fácil se torna julgarmos que é o vento que tem voz faladora.
Agora que penso nisso, também me parece razoável crer que o múrmurio qu oiço possa ser a conversa entre homens muito distantes, algures, e que é o vento que a trás até nós. Depois o vento dá meia volta e regressa a esses homens e diz-lhes, com a nossa voz: “estão a ouvir o vento?” Porque isso foi o que nós dissemos.
Estamos a comunicar.

24.11.05

Sonho uma Floresta de Ouro, onde Pássaros de Diamante cantam o fim da Cobiça.
Ou então não Sonho, e tudo é real.

23.11.05

Certa vez, um ancião de terras estrangeiras disse-me: “a vida é um império no palácio da morte”.
Não lhe dei resposta: não a tina. Mas hoje, lembrando essas palavras, penso:
Se a vida é um império, quem é o imperador? E qual a grandeza de um palácio? E qual a dimensão da morte?

22.11.05

Um sonho virá em visita. Estarei acordado. Acordarei num sonho acordado. Sonharei.

21.11.05

Comunicar... Darmo-nos a entender, entender os outros, deve ser esta a coisa mais difícil que existe para ser feita. E o que é estranho é que se trata de uma coisa de todos os momentos, absolutamente necessária. Um homem não pode comunicar apena consigo próprio: se o fizer, chega um ponto em que só o seu mundo interior me importa; e quando, por qualquer razão, é inesperadamente chamado ao mundo dos outros, que é o mundo de todos, afinal, ei-lo que não entende, e só diz: “mas onde estou eu?, o que é isto?, o país-do-que-não-existe?”
Embora tudo exista.

20.11.05

Comunicar... Diz-se, explica-se a imperfeição. Há gestos especiais; e palavras, quase tantas como as estrelas. Apesar disso, são ainda demasiados os erros contidos nos nossos actos de contacto e entendimento. A perfeição seria os próprios tocarem-se. A clareza, a luz. Não poder mentir, nem aos outros nem a nós... Mas como é que os espíritos se podem tocar? Cada vez são mais as coisas que os separam, menos consideradas as que os unem... Os meus semelhantes são cada vez mais diferentes de mim. Mas é uma diferença que não é boa, porque confunde a semelhança paralela, que é real, forte, e existe para lá de qualquer acaso. No entanto, quantos movimentos e palavras para exprimir a mais simples realidade, o mais ligeiro pensamento.
“Adeus”, por exemplo. Dizer adeus é tão complicado... Primeiro, pode julgar-se que basta apenas voltar costas. E é isso que se faz. Só que, depois, descobre-se que aquilo a que se virou costas deixou sinais em nós, marcas que não se deixam apagar — embora se vá já de frente, seja como for, para qualquer coisa nova. Partir é separar. Chegar é o derradeiro instante de uma despedida. Ou não: tudo, assim, se pode pensar. Tudo é evidente e inalcançável. E diz-se, talvez: “pois não é a própria natureza da vida que determina a nossa certeza da morte?”
Quanta dor na simplicidade.
Quanta alegria.

18.11.05

É o meio do dia, o sol a pino. Dispo-me. Estou despido. Estou nu. E nu, serei ainda um guerreiro? Ou apenas um homem? Ou um guerreiro é nada mais que um homem? — de uma vez por todas.
Seja como for — a questão é sempre outra —, nu, sob o sol a pino.
Possível, deserto, impossível. Necessário, tudo.
Agora danço. Danço e canto. Sou o espírito fugido ao feiticeiro, sou a própria música. Chamo a ilusão:
“Vem, vem. Serpente-cobra, vem. Morde”.
Danço. É preciso, a serpente, a louca nudez ao sol de morrer em chamas, nu, sempre a cantar, sempre a dançar.
Meio do dia, exausto. Mas, finalmente, a cobra ouve, e vem. A sua cauda canta agora comigo — o meu silêncio. E na sua boca, dança-lhe a língua em vaivém, com silvos de perigo. É no seu olhar, no entanto, que me prendo: aquele frio, aquela determinação... Um olhar de deus-fascínio.
Estamos próximos, cada vez mais frente a frente. Reconheço algo do espírito de um guerreiro nesses olhos metálicos e ferozes. Serpente, ouves-me? Vem. Dança comigo. Morde.
E ela vem, agradada de tão faminta entrega. Rodeia-me, quase me roça com a sua pele de escamas de neve. E, de repente, morde.
Dor lancinante, que me derruba. Sinto cada um dos instantes. Só um gesto consigo: o de espalhar pelas minhas feridas vivas, em plena sangradura, os unguentos mágicos.
A cobra desapareceu.
Agora, esperar — em outra espera. Dor, cada vez mais dor. Febre. Sol. Tudo queima. É preciso resistir.

17.11.05

Mais instantes, distintos, iguais. Nada acontece. Mas que será do meu pensamento?
Por trás dos meus olhos, só encontro lágrimas, lâminas, gritos. Imensa estranheza de nada.
Por dentro dos meus olhos, em frente, tudo está num banho de névoa, tudo é luz.
Sinto-me atirado de uma parede para outra, mas esta inimizade não é minha. Eu sou sem importância, aqui.

16.11.05

Penso: se eu morrer, a minha carne será devorada pelos abutres.
E, assim sendo, o que ficará de mim nos meus ossos? Porque os ossos ficam, sempre, durante demasiado tempo...
Não. É preciso não morrer.

15.11.05

E o tempo não passa.
Quero sentir as minhas armas perto de mim. Onde é que elas estão? Não as vejo. Não vejo. Sou obrigado a palpar todo o terreno em meu redor. Areia. E isto? A minha roupa. Mais ao lado. Sim, ei-las agora. Eis a minha respiração, que a sinto nas mãos: a faca, o machado, o arco, as flechas.

13.11.05

A faca. Corto-me com ela, nas costas da mão direita: um golpe delgado, curto, superficial. Continuo cego. Mas com os dedos da minha outra mão, sinto o sangue quente, doente, envenenado. O meu próprio sangue. Penso: a faca não sente. Nada. É isto respirar?
Toco o machado, que também nada sente. Toco as flechas, sinto-lhes as pontas aguçadas — a que chamo “mensageiras da morte” — , e toco as penas, na outra extremidade, que servem para lhes dar direcção no voo. Estas penas já pertenceram a aves — animais vivos. Animais que voavam. As flechas não voam. As flechas cortam o ar, vibrantes, zunem, atingem alvos, matam, mas não voam.
Onde se perdeu a minha serenidade? Que respiração é esta?
Agora estico a corda do arco e depois solto-a de novo, como se atirasse. A corda vibra, e esse seu som em movimento, tão especial, sobrepõe-se ao som, à voz do próprio deserto. Aproximo o ouvido. Sim, este arco canta, com a sua alma única — mas a sua canção já não me embala.
De repente, sinto-me absolutamente nu, nu até por baix oda nudez. E, embora com os olhos nada veja, começo a ver tudo. A serenidade regressa, perde-se a importância, a luz basta.

12.11.05

Deito-me, a cabeça perdida sobre o volume da minha roupa reencontrada. (Ainda) penso: estes tecidos têm cheiros, manchas, sinais. É como se contassem histórias. Mas valerão elas a pena? Não sei. Já não sei.
Houve um tempo em que os homens, guerreiros ou não, andavam sempre nus. Talvez então a pele recolhesse bem as verdades, melhor que qualquer roupa, e as histórias que daí fluíam fossem boas e valiosas. Pois não são essas histórias as que servem agora os mistérios, a aprendizagem dos jovens, a conduta dos grupos?

11.11.05

Começo a compreender, e receio essa compreensão. É algo dentro de mim, renascimento perante o qual ainda só sei pôr-me de fora.
Digo: um guerreiro é um ser natural. Mas estará ele em consonância com toda a natureza?

8.11.05

Sinto o veneno da cobra a começar a fazer efeito — a tornar-se verdadeiro. Repentinos tremores gélidos, espasmos dos músculos ferventes, um enorme mundo oco dentro da minha cabeça. Mas não tenho medo. De nada serve o medo, aqui.

7.11.05

Tenho a impressão de já me terem falado de tudo. Só disto, talvez por ignorância, guardaram segredo, cercado por muros de silêncio. Mas o que é o silêncio senão todas as palavras, todos os sons, todas a imagens ao mesmo tempo? Há quem por isso mesmo o tema, por essa totalidade alucinante e dolorosa; e são esses os que o usam para nele esconderem as suas baixezas. Mas todo esse vazio, todo esse ódio no espírito, criam marcas à superfície — sinais fáceis de reconhecer, para quem quiser aprendê-los e aprender a defender-se: certos olhares que recuam, certos modos de fazer que vacilam, certas palavras que resvalam em si próprias... ou o contrário, em grande alarde.
O silêncio genuíno é puro.

6.11.05

Meio da segunda metade do dia: retomei a consciência do tempo a passar.
De vez em quando, parece-me ouvir uma voz a falar — e oiço — e é o sol, a dizer:
Agora começo a enfraquecer, a ficar velho. Vou descrever a minha própria morte, mas amanhã regressarei. Aqui nos encontraremos de novo, para reatarmos a nossa conversa: ainda há muitas coisas a desvandar, neste nosso confronto”. Aceito, embora não asaiba bem o quê.
É cedo. Continuarei a esperar.

5.11.05

Um frio inesperado invade-me — de fora, fora do tempo —, como se fosse ainda, ou já, o tempo dos gelos duradoiros. Como é que um só dia pode durar tanto?
Nunca tinha realmente dado por isso. Conhecia apenas aqueles momentos únicos em que, por exemplo, uma faca de guerra ficava suspensa frente ao meu pescoço, tempo nenhum e infinitamente: tudo parava então, e toda a minha vida, de repente, se recriava ali, lembrada.
Sobrevivi a essas duras provas, e quase as tinha esquecido já. (Esquece-se depressa — quando se quer, quando é preciso, quando assim convém). Mas nunca se esquece. E tudo se sabe, sempre.

4.11.05

Penso:
“Viver tudo num só dia, e depois morrer”.
Mas será possível? E justo? Quer dizer — natural?

3.11.05

Ergo-me. Tudo é doloroso. Por onde andará a vida? Talvez eu nada esteja a fazer aqui. Toco-me:
Isto são as minhas entranhas. Não há nada nelas. Ou há: isto, que é o coração a bater.
E isto: é o ar — e eu respiro. Estou vivo.
Não faz sentido. Talvez nunca tenha feito.
“Ergue-te mais, guerreiro”, diz-me o meu peito de mim, apesar de mortalmente cansado.
E eu obedeço, para longe a morte: muito a custo embora, ergo-me, absolutamente. Que se faça o que o peito disse, digo: ele falou pela voz do guerreiro que me está no sangue, rio da minha vitalidade, veneno primeiríssimo contra o qual nenhum unguento alcança eficácia. (E, no entanto, na compreensão que atingi, as armas já não voam, já não falam, já não cantam... Que guerreiro sou, afinal?)
Uma nova força, que desconheço, reinstala-me na dança. Impossível? Já nada o é: porque poderosa é a carne que me sustenta, e mais poderoso ainda o espírito que a anima.

31.10.05

Eis que o sol morre de vez agora, sangrando na areia uma ilusão de fogo, de sangue seco.
E, súbita, a serpente reaparece, por vontade sua. Será assim, a cerimónia?
“Conheço-te”, digo-lhe eu. “Conversemos”.
“Que conversa queres ter?”, pergunta ela, a sorrir. É um sorriso de serpente, subtil, malicioso.
“Falemos de nada”.
Vejo-a a dançar um pouco, só para os meus olhos, antes de tornar a falar. Finjo, contudo, que nada vejo, e ela, aborrecida, rende-se ao jogo — seu — das palavras:
“Não és ninguém, guerreiro. O que vieste aqui fazer, ao reino de coisa nenhuma? Aqui não há servos nem senhores, e tanto a vida como a morte têm o mesmo e um só valor, que é o de nada valerem. Aqui, tudo o que há é tudo o que vês: sol e areia. Vieste em busca da morte, talvez. Esquece isso: é um mistério demasiado fácil para ti. Talvez encontres a tua, mas nunca ela”.
Dança um pouco mais, a provocar-me, a observar a minha atenção. Permaneço imóvel, mas a observá-la também: é espírito de muitos truques, não há cuidados que bastem.
Mostra-me de novo o seu sorriso mau. Mas parece estar satisfeita. Prossegue:
“Aqui, somos todos iguais. Somos o grande vazio. Devez tê-lo pressentido, e vieste, talvez, não pela morte mas pelo sonho de um despojamento total. Puseste-te tão nu quanto eu, e não te deixas perturbar. Até já te crês mais forte. Mas é sem importância, essa nudez. Porque, acredita, não há totalidade que alcances nem despojamento que consigas: terás outro cavalo, continuarás com as tuas armas. Pois julgavas que ias poder livrar-te delas, recuperar o silêncio sem nome dos primeiros instantes da vida? Liberta-te antes dessas miragens: sem armas, ficarias sujeito a uma nudez bem diferente dessa que agora apresentas — uma nudez nua, excessiva, feita de vazio e dor: uma nudez que homem algum pode suportar por muito tempo.
Poderia continuar a conversar contigo, interminavelmente, mas não vale a pena. Ambos sabemos que já tudo foi dito. Tu conheces a verdade, que é a tua verdade, e é à tua custa que a aprendeste, e aprendes, e aprenderás. Não sei, contudo, se esse conhecimento te vai alguma vez ser útil. Não sei se saberás usá-lo nos momentos certos, que é o que o faria importante. Seja como for, de mim não deves esperar mais nada. O meu veneno está em ti. Isso basta”.
Silenciosa agora, e de repente, a sua língua hipnótica. Escutei-a. Mas será que a ouvi?
“Acabaste, serpente?”, pergunto-lhe.
“Acabei”, diz ela.
“Então porque não te vais?”
“Estou ainda a olhar para ti, a ver-te bem pela última vez, e para todo o sempre. São cada vez mais raros por aqui, os doidos como eu. Geralmente, os homens preferem as ilusões mais palpáveis: o poder, a riqueza, a lúxuria. Tu não: és um louco da mais antiga espécie”.
“Sou um homem”.
“Ainda duvidas?”
“Duvidarei sempre de tudo o que me parecer duvidoso”.
“Que desejas, então?”
“Não sei”.
“E quem te julgas?”
“Ninguém, em concreto. Acontece, no entanto, que, nesta noite que passou, surgiu-me na minha certeza de ser homem a fugaz incerteza de não o ser — de não o ser inteiramente”.
“Sonhaste, talvez, que tinhas nascido nas estrelas”.
“Como é que sabes?”
“Sei. É verdade: todos os homens nas estrelas”.
“Que quer isso dizer, ao certo?”
“Qual o significado de todas as palavras de uma serpente?”
“Não sei”.
“Aí tens a resposta: não sabes. Nunca saberás”.
“Jogas bem com as palavras, e fazes-te maior pelo uso delas, mas até os enigmas que me lançam acabam por ser um jogo maior que tu”.
“Pensa e faz o que quiseres, segundo o que acreditas, e acredita no que aprendes de ti. Chamarás a isso liberdade. A tua liberdade. Já to tinha dito. Assim como já te tinha dito: a partir do momento em que o meu veneno entrou em ti, eu própria já não tenho qualquer importância”.
“Vai-te, então”.
“Preferes estar só?”
“Não o temo”.
“Um guerreiro não tem medo de nada, não é?”
“Um guerreiro não morre de medo. Mais que isso é coisa que também desconheço. Sou de uma grande ignorância”. “Ainda bem que asim é. Deixo-te então, como me pediste. Tu és tu, e portanto és tudo. Vive muito”.
Começa a afastar-se, para dentro da noite da noite que se avizinha.
“Diz-me ainda”, chamo-a eu.
“O quê?”
“O teu veneno far-me-á enlouquecer?”
Horrorosa de maldade, a gargalhada que ela dá.
“Guerreiro, louco é o que tu mais és. Não to tinha dito já?”
De puro gozo, a gargalhada ainda a ecoar.

29.10.05

Só.
Regressa-me agora a visão nítida, se bem que o céu já tenha escurecido a terra. Vejo tudo (com os olhos), só não me vejo a mim. Por onde andarei eu, nesta hora-fantasma?
A meu lado, inúteis, continuam as minhas armas. Não lhes toco: apenas me despeço do brilho que ainda lhes resta, pôr-do-sol sem fim. Nu — duas vezes nu, enfim —, que sofro eu de indizível, afinal? A serpente mentiu. Ou será que terei de enterrar sob montanhas de areia estas armas que já não sou, de modo a que nunca mais as encontre?
De modo a que, seja lá por que for, possa sentir-lhes a falta. Serei capaz disso?
Sou. E é o que faço.
Depois, torno a sentar-me. Prossigo a obscura espera.

28.10.05

Noite de novo. Absoluta.
Não sou senhor de mim. Falo em voz alta, mas parece-me ser sempre a voz de alguém que eu não sou. É um sonho — aquele que, afinal, eu já sabia mas esquecera. Um sonho assim:
Algures, um grupo de viajantes canta e dança, ao redor de fogueiras acesas, numa noite de lua cheia. Dançam e cantam para enganar o desespero, a ansiedade da espera. Porque é facto que me esperam. Eu estou longe, ainda; não sei quem sou, ignoro qual o meu nome. O vento entra-me por entre os cabelos, o meu cavalo parece incansável. Amo esse vento, amo esse cavalo. Chego, finalmente, coberto de pó, exausto, mas cheio de um sorriso vivo, que nenhuma imagem em águas paradas poderia alguma vez decifrar. Excepto eu. Explico-me: descobri o caminho procurado, o caminho que faltava. As crianças rodeiam-me, os homens abraçam-me como a um seu igual, irmão. Toco as mulheres no rosto, beijo-as na testa... e alguma coisa de grávido fica, de súbito, a brilhar nos seus olhos brandos, enormes. As fogueiras crescem, envolvendo o luar: abrem rasgos no breu da noite, o céu fica ainda mais amplo... O que é que me falta? Nada. Nada parece ter fim, tudo sugere explicação. O vento dorme agora. O cavalo...

27.10.05

O próprio sonho me deixa esgotado. Mais um mistério para a minha perturbada compreensão. E, no entanto, é fundamental aprender a ler os sinais. Todos os sinais.

25.10.05

“Perdi a memória”.
Tenho de reencontrar o cavalo. Falar-lhe ao ouvido. Fazer-lhe as perguntas exactas — as perguntas do caminho certo?
Mas como é que um gerreiro pode encontrar o caminho certo?
Mais difícil ainda: o que é o caminho certo?

24.10.05

O mais importante, talvez — um pormenor que me escapou: no meu sonho, eu estava armado? Havia reflexos de olhares nas minhas armas de sempre? A verdadeira questão é: era eu um guerreiro ou não?

20.10.05

Por momentos, parece-me ouvir uivos distantes. O meu peito salta, e o meu espírito acompanha esse grito nocturno com um grito semelhante. Sinto-me animal livre. Mas ninguém me deseja boa caçada.

19.10.05

Um homem, quando se tem a si próprio, pode não ter mais nada, porque ter-se lhe basta. Mas, assim sozinho, serei eu capaz, alguma vez, de ver através dos outros homens? Porque no meio deles é que a minha história se há-de completar.
É de estar lúcido, apesar de tudo, que sinto este medo frio de não conseguir ver. Sei, desde há muito, que os homens não são límpidos: a única coisa que, com certeza, é possível ver atravessá-los chama-se morte, e a morte não ajuda. A morte também não vê nada.

18.10.05

Penso uma vez mais nas palavras da serpente. O que me estará a fazer, ao certo, o seu veneno? Agora já não sinto a febre, nem o delírio de estar a provar todas as doenças, mas há algo... Não sei, não sei, não sei... Sufocante inquietação.
Sinto-me como se um monstro inimaginável fosse surgir-me pelas costas, na intenção de me devorar, mas eu não conseguisse fugir — nem sequer voltar-me, para defrontá-lo. Será isto a nudez? Será isto o medo, a morte do guerreiro, a miséria absoluta?
Se eu abandonar tudo aquilo com que sempre vivi, será que me tornarei melhor? Será que me tornarei puro, matéria virgem? Ou, pelo contrário, será que vou apenas ficar mais vazio, mais perdido, mais próximo da face mais gélida da morte total?

17.10.05

Reaquece a areia.
Dói-me tudo, e não sinto nada mais que essa dor constante e grave.
De repente, não sinto nada, e desconfio.

16.10.05

Olho. Limito-me a olhar. E vejo uma forma sinuosa a passar-me pela frente, sem se deter. É a Serpente. Chamo-a. Ela não dá resposta. Chamo-a pelo nome, mas ela desaparece.
Estou certo de que não se tratava de uma alucinação; e por isso penso: não era a Serpente, mas uma serpente.

14.10.05

Ergo-me. Espreguiço-me perante o sol ainda nascente. Estou vivo. Fabulosamente vivo. Imagino-me a ver-me, de longe, através dos olhos de outro homem.
O que vejo é uma vaga silhueta erecta, longínqua, perdida na vastidão do deserto doirado.

13.10.05

Vejo-me agora pelos meus próprios olhos, e descubro-me vestido. Afasto o tecido, em busca das minhas feridas. Vistas assim, como se pela primeira vez, parecem particularmente insignificantes. Todavia, algures em mim, uma contínua e silenciosa dor permanece activa. Dir-se-ia que o veneno atingiu mais fundo que a carne, porque a dor parece ter-se instalado no próprio espírito, como uma angústia sem fim.

12.10.05

Mil vezes se podem repetir as palavras, até elas deixarem de fazer sentido.
Tudo aquilo que era parte integrante de mim tornou-se agora num imenso, entendiante vazio. Muito mais apurada a desconfiança, mas nada mais. Resta-me manter os sentidos alerta, apesar dos gestos lentos.
Em desejo, vejo-me a chegar junto dos meus, que me recebem com perguntas nos olhos, silenciosas. Mas não esperam pelas minhas respostas: primeiro, oferecem-me o que têm de melhor para um homem que acabou de fazer a experiência do conhecimento do nada: alimento, calor e cama. Contudo, as perguntas ficarão sempre por responder, a fome será fundamentalmente outra e o sono recusar-me-á a sua visita. E não serei compreendido, apesar de toda a compreensão. Talvez seja mesmo odiado: como ter a certeza do que em mim vêem as mulheres jovens, os guerreiros que ainda não provaram o deserto? Sou de lado nenhum, sê-lo-ei sempre.
Não, estou a sonhar. E espero que não passe de um sonho mau, porque preciso de todo esse calor que nem o mais forte sol do deserto me poderá alguma vez dar.

11.10.05

Sinto uma sede que não cessa, uma fome que já nem sinto. Começo a caminhar. Os meus pés enterram-se na areia mole, a cada passada, e cada vez que avanço receio afundar-me totalmente neste chão sem cheiro, mas cheio de mistério.
Imagino uma nação oculta sob as areias, e uma infinidade de entradas para ela dissimuladas nos suaves vales entre as dunas. Imagino um homem a vir por aí fora, em viagem, e, de repente, é sugado para essa Nação Subterrânea. Cai num chão de pedra, num espaço completamente às escuras, e fica em expectativa, à espera de que o ataquem, pois é a isso que está habituado: atacar e ser atacado, matar ou morrer... Depois, lembra-se de que está desarmado. Quer dizer, tem o corpo, a vontade de viver. Retesa-se, banhado em suor, embora aqui, contrastando com a fornalha lá de cima, do ar livre, se faça sentir um frio de pedra, que lhe roça a pele e lhe atravessa os pensamentos. Pergunta ele: “quem há?” A sua voz ecoa. O negrume é total, infindo como o de um céu nocturno sem lua nem estrelas.
O homem assim aprisionado sou eu, e penso:
“Todas as saídas se fecharam. Estou num mundo secreto, e do qual não há fuga. Cheira a mortos”.
Não sei de onde me vem a certeza disto que penso, mas a verdade é que a tenho. Começa a faltar-me o ar.
Continuo a caminhar.

10.10.05

Qual o real significado de todos estes sonhos em vigília acesos? Será o verdadeiro mundo, de facto, um mundo escondido no âmago das aparências? Como ter a certeza absoluta do que penso, mesmo tendo-a? Como ter a certeza absoluta seja do que for?

9.10.05

Penso: “o meu povo”.
O deserto é como um grande rio — e este outro pensamento ajuda-me a nadar contra a corrente. Mas, enquanto rio, o deserto é animal de mil rostos, que não me deixa entender a natureza da corrente contra a qual luto. Porquê contra? Porque não há-de o próprio rio ajudar-me também?

8.10.05

Talvez eu tenha estado no centro do deserto: talvez eu esteja sempre no centro, de mim próprio e do mundo, e isso é que me dificulte a compreensão de todas as coisas.
Talvez eu tenha estado no deserto, no coração, e por isso o meu coração encheu-se de areia: agora o sangue não corre, e ue, animal de gelo, só já caminho porque o frio me conserva de pé. Talvez seja necessário que eu seja os outros, para que consiga finalmente compreendê-los. Mas entender sem ser entendido...
Quererá alguém ser eu? Será alguém capaz? Serei eu?

6.10.05

Penso: “o meu povo”.
Uma miragem de água barra-me o caminho: um lago salgado, de águas absolutamente paradas. Mergulho nele, flutuo sem fazer um gesto.
Quando regresso à margem, estou seco. Torno a olhar o lago: a água não se agitou nem um pouco que fosse. Chamo então o vento suave, e ele vem. Mas continua inpassível, o rosto do lago. Chamo, pois, o vento de tempestade. Em vão: ele ruge, assobia, sopra, mas tudo permanece igual, à superfície.
Mando o vento embora e vejo-me reflectido na água, misturado com o sol, por trás e por cima da minha cabeça. Mas o brilho da luz altera as formas, e quase não me reconheço: pareço um deus sem pátria — um deus caído em desgraça. Pergunto, em voz bem alta: “qual é o meu povo?”
A miragem desaparece, e oiço uma risada longínqua, que me estremece o peito. Envenenado, ainda. Será que tenho de sangrar todo, será que tenho de morrer para me libertar disto? Ou será que estou a enlouquecer — ironia última — com algo que não existe?

5.10.05

Pela voz do homem se faz ouvir o guerreiro, pela boca do guerreiro fala o homem. Onde, como e porquê, cada um deles? Definitivamente.

4.10.05

Para quê, tentar a morte, se todos os combates se equivalem? Mas escolherei: levarei o espírito guerreiro a mais nobres lutas, despojado de tudo o que não seja o seu verdadeiro querer.
O meu povo é: todos os homens. Há-de sabê-lo.

3.10.05

Jovem e fogoso, acho-me inesperadamente a pensar nos velhos, no respeito que se lhes tem por obediência à tradição. Há os que já dizem que é preciso tirar-lhes esse poder, silenciar toda e qualquer voz de sensatez. Quem assim fala são aqueles que nunca fizeram verdadeiros combates, mas apenas guerras cegas: sangue derramado sem fim, enormes campos de carne dilacerada e morta, onde, pela manhã do dia seguinte, as aves recomeçam a cantar, alheias à estupidez dos homens. É preciso desconfiar de quem defende as tradições, tanto como de quem as ataca. E depois desconfiar de quem desconfia. E, se for preciso destruir, que se destrua a sensatez a par da sede de sangue.
O meu povo é, mais que todos os homens, cada homem por si só, frente a frente, conhecimento a conhecimento, e pacientemente.

2.10.05

Estas as palavras de uma antiga voz:
“Andarás tempo infindo, sem nunca parar. A sede será a tua direcção, a fome o teu espírito, o céu o teu olhar, e o sol a tua provação. O teu corpo será de terra, mesmo antes de o ser, e nada saberás ao certo, nunca, nem de ti nem do mundo. O homem que viaja com a Serpente no seu íntimo é um ser perdido”.
E se assim for, realmente, como regressar? Haverá regresso possível? E regressar a quê?
Aconteceram mudanças em mim. Não é lícito pensar, pois, que também tudo o resto mudou? Mas penso também: se um objecto muda de lugar, poder-se-á dizer que uma mudança ocorreu, simultaneamente, nesse lugar? A mudança real, é por dentro ou por fora que acontece? Que coisas é que são sinais de outras? — como a estátua de um homem é um sinal do que esse homem é ou foi.
E ainda: a mudança é boa ou má? Ou melhor: como distinguir uma mudança boa de uma má? Qual o critério? Quem o define? Como?

1.10.05

Último dia, em despedida: um adeus tão triste que dói. Mas só pertencendo a isto se pode compreender.

30.9.05

Haverá homens no futuro capazes de ver como eu vejo, de sentir o que sinto? Haverá homens com os olhos e o coração semelhantes aos meus?

29.9.05

Penso: para quê tantas perguntas? Só um espírito desocupado se ocupa com os problemas da dúvida. Contudo, penso também: só a dúvida permite alcançar a certeza. Mas será duvidar, este constante questionar? E penso ainda: haverá alguma coisa certa em mim?

28.9.05

Quando um homem vai até esse ponto nas suas interrogações, acaba por tornar-se perigoso para si próprio. E que perigo haverá maior que aquele que não tem rosto, ou cujo rosto nos é por demais familiar? Ah, sim, eis como nasce o medo — um dos muitos medos que existem.

26.9.05

Detenho-me, por momentos. Respiro fundo. Não temo a antiga voz, não quero temê-la. Não quero temer coisa nenhuma. Se há algum poder maior lá em cima, nas planícies do céu, então eu sou como ele. Sou um nada, é verdade — um grão de areia mole, leve ao vento —, mas é o grão de areia que, com muitos outros iguais a si, faz o deserto.
O próprio céu, visto daqui, parece, ele também, um deserto. Um lugar sem água, com areia azul.

25.9.05

E penso: o espírito de um homem, seja ele o que for, é um deserto. Por isso, é preciso muito trabalho e grande perseverança para que cada homem consiga fazer nascer em si um pedaço de verde, de floresta e rio — de conhecimento e solidez.
Nas terras altas, o gelo é outro deserto. Quando o calor chega, o gelo derrete e transforma-se em água que corre. Assim os homens em crescimento (o deserto em criação): os grãos de areia, unidos, são rochas; o vento sopra, transporta sementes pelo ar, e a rocha abriga-as; e as sementes germinam e brota a vida. Chega a água que corre, seu alimento. Tudo se conjuga para um só fim.
Também o coração de um homem tem de ser rocha, por fora, de modo a poder abrigar, no seu interior, qualquer coisa viva. Água, sangue, vento ou carne, pouco importa: vida. É preciso. É assim que um homem é.

24.9.05

No entanto, pergunto-me: valerá a pena tudo isto?
Mas por certo que vale: nada mais existe.

23.9.05

Estou cansado da minha inquietação. Porque, quando se vive inquieto, não se consegue viver, nem se deixa viver os outros à nossa volta.

22.9.05

Não vou lutar mais. E nisto, o que digo é: não vou procurar mais as lutas. Estou no meu caminho. Todos os caminhos são o meu, e eu estou nele. A luta virá por si. E que venha — serei o último a falar, a partir de agora: nada sabendo, aprendi coisas, e tenho coisas para dizer. Haverá, portanto, um tempo meu, exacto, porque em tudo o que há pode haver também a minha presença. Não, não preciso de águas paradas para me ver nelas, reflectido: consigo ver-me assim mesmo, e reconheço-me transparente. Se os outros em meu redor não o são, não importa. Não importa os outros, mas o que posso ser perante eles. E o que eu posso ser de melhor é eu próprio.
Começo a compreender. Começo a ver o medo como uma espécie de animal — um cavalo selvagem, que é preciso domar antes de montá-lo. Conhecer a serpente foi aprender a arte de domar. Agora, vou cavalgar o medo através do mundo, e vou andar direito, e olhar a direito, porque consegui conquistar o deserto para o meu próprio coração, e estou a construir coisas nele. Estou a conhecer a minha natureza e o meu poder. Não haverá tristeza nem alegria que me desviem disto: de mim. Quem cavalga o medo, cavalga tudo.

20.9.05

E eis que avisto as primeiras montanhas.
De repente, estão ali, longe e já tão perto e longe, e é estranho, porque não sinto nada, nem felicidade nem sofrimento.
A serpente tinha razão: sou louco — ou estou-o. Mas não será a loucura senão o poder de ver a transparência de tudo, até mesmo do que só existe oculto?

19.9.05

Sentar-me-ei, portanto, entre velhos e novos, e aos novos chamarei deserto, e aos velhos gelo da montanha.
E então direi:
“Fui e vim e sei. Que acabem os segredos. Porque entre vós me coloco, eu que sou um vale, um lugar de passagem, um pedaço de todas as coisas que há à superfície e nas profundezas deste mundo”.
E os novos hão-de falar, impulsivos, e hão-de falar, ponderados, os velhos, mas eu saberei permanecer silencioso entre eles, a escutá-los, firme na força do meu conhecimento.
Porque agora sei os lugares impossíveis que eles habitam, e sei o meu próprio lugar. No silêncio absoluto que acabará por se fazer, acrescentarei apenas: “Falem com o meu cavalo; ele também sabe”.
Não entenderão, provavelmente. Mas será sem importância, essa estranheza perante um cavalo sábio: virá o tempo em que eles não poderão fugir mais à verdade que abre a porta de todas as outras.

18.9.05

Vou sair do deserto sem armas. Sou um homem de espírito aberto, de mãos nuas. Venci o veneno.